quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Pedras e calendários















Jogo infantil, localmente conhecido como Amarelinha, com a representação do "Céu", desenhado numa rua de Macapá


Arqueastronomia na Savana Tiriyó (Tumucumaque): uma abordagem preliminar

Manuel Calado

1. Introdução a uma arqueologia desconhecida
Os Tiriyós (Trios ou Tarenos) ocupam actualmente uma extensa área de savana, na fronteira entre o Brasil (Pará) e o Suriname. Trata-se de uma paisagem de “campos gerais”, rodeada de floresta tropical, junto da divisória de águas que separa a bacia amazónica, nos troços superiores dos rios Paru do Oeste e Paru do Leste (Pará, Brasil), da bacia do rio Coratijn, no Suriname.
A paisagem física é muito marcada pela presença de inselbergs graníticos, de diferentes fisionomias; note-se que o granito é uma das rochas mais utilizadas, um pouco por todo o mundo, na “construção” de monumentos megalíticos.
A língua falada pelos Tiryiós pertence à família Carib e, no mesmo território, convivem outros grupos mais ou menos aparentados.
As primeiras notícias (e, na verdade, praticamente as únicas) sobre a arqueologia na savana Tiriyó ou Savana do Paru (em território do Suriname, essa mesma paisagem continua com a designação de Savana Sipaliwini, onde habita uma parte dos Tiriyós), devem-se a Protásio Frikel, investigador e missionário alemão que esteve entre os Tiriyó, entre as décadas de 50 e de 70 do século passado.
É provável, como os Tiriyós defendem (e Frikel admitia também), que exista uma relação genética entre esse povo e os autores dos monumentos “megalíticos” e da arte rupestre da região. Na verdade, a mobilidade dos grupos humanos, largamente potenciada, nesta parte do mundo, pela agressão colonial, deve precaver-nos de conclusões precipitadas: é necessário contextualizar melhor os referidos vestígios, cruzando, sempre que possível, os dados arqueológicos com os dados etnográficos.
Segundo Frikel, os Tiriyós atribuem aos Aibüba, os Antepassados, a autoria de, pelo menos, quatro monumentos, constituídos sobretudo por alinhamentos de pedras, dos quais o autor alemão observou e descreveu apenas dois.
São precisamente estas construções, o objecto deste texto; devo observar, desde já, que Protásio Frikel anotou convenientemente as orientações astronómicas dos alinhamentos e deduziu o carácter cerimonial do sítio. Essa leitura foi, aliás, bastante reforçada pelas lendas dos próprios Tiriyós.
Anote-se, a propósito, que na fronteira entre o Amazonas e a região caribenha, para além destes alinhamentos que, à partida, poderemos integrar no universo conceptual do megalitismo, existem outras manifestações simbólicas que estão na fronteira entre megalitismo e arte rupestre: trata-se de figuras (antropomorfas, zoomorfas, geométricas), desenhadas com pequenas pedras justapostas, no topo de inselbergs graníticos.

2. Arqueoastronomia: brevíssimas notas
Os primeiros passos da arqueoastronomia, aplicada aos monumentos megalíticos, devem-se, aparentemente, ao reverendo William Stukeley, que, no sec. XVIII, se baseou na observação, confirmada por todos os investigadores posteriores, de que o eixo de simetria em Stonehenge (o monumento megalítico mais conhecido em todo o mundo, no Sul de Inglaterra) se alinhava com a posição, no horizonte, do nascer do sol no solstício de Verão, em articulação com a Heel Stone, um menir localizado no exterior do recinto.
Essas propostas precoces ganharam contornos mais ambiciosos, ainda ao longo do mesmo século, com os trabalhos de L. Lewis, que defendia, em acréscimo, a importância dos alinhamentos estelares, tendo sido o primeiro a avançar a ideia de que os monumentos definiam também alinhamentos astronómicos com elevações proeminentes no horizonte.
Destacam-se, igualmente, nessa fase pioneira da investigação sobre o tema, os trabalhos de H. B. Sommerville, que deu a conhecer o primeiro alinhamento lunar nos monumentos de Callanish, nas Ilhas Hébridas.
Daí para cá, multiplicaram-se os estudos arqueoastronómicos; porém, de uma forma geral, a arqueoastronomia não tem tido uma recepção entusiástica da parte de grande parte dos arqueólogos: na verdade, como se compreende, muitos dos trabalhos publicados são da responsabilidade de investigadores oriundos de outras áreas do conhecimento (astronomia, engenharia, história da Ciência…).

Coube, efectivamente, à chamada “arqueoastronomia cultural”, nas últimas duas décadas, um papel mais integrador, em termos epistemológicos.
Com este impulso teórico, articulável, aliás, com outros desenvolvimentos no seio da arqueologia, a arqueoastronomia atingiu, pela primeira vez, o estatuto de disciplina universitária.
A esta nova formulação, não foram alheios os avanços da arqueoastronomia meso-americana, histórica e etnograficamente sustentada e integrada no estudo de elaborados sistemas culturais e simbólicos.

Em termos puramente arqueológicos (nos casos em que não dispõe de dados etnográficos, históricos ou etno-históricos) a arqueastronomia tem-se concentrado sobretudo nas seguintes campos:
1. A iconografia. Neste domínio, destaca-se largamente o contributo da chamada arte rupestre (geralmente pinturas ou gravuras sobre suportes rochosos); em menor grau, existem alguns documentos arqueoastronómicos que chegaram até nós noutros suportes. O Sol, a Lua e outros corpos celestes foram representados, de forma bastante recorrente, em contextos simbólicos mais ou menos complexos.
2. Os alinhamentos astronómicos azimutais (em função das posições do nascer ou do pôr dos astros, em relação ao horizonte). Estes alinhamentos (sobretudo os dos equinócios, solstícios e pausas lunares) foram materializados quer através da posição de elementos de monumentos, quer de monumentos entre si, quer ainda da relação espacial entre estes e certos elementos da paisagem natural.
3. As notações calendáricas. A observação dos movimentos cíclicos dos astros, controláveis através da respectiva posição no horizonte (mas não só), traduz-se, naturalmente, no estabelecimento de sistemas de contagem do tempo.
As mais antigas evidências arqueoastronómicas são, precisamente, marcas que parecem registar o cômputo do ciclo lunar (e do ciclo menstrual): os primeiros astrónomos, no feminino…

No Brasil, a arqueoastronomia tem-se focado principalmente na iconografia rupestre, particularmente rica e diversificada. Em paralelo, existe um corpus considerável de estudos etnoastronómicos; porém, a ponte entre estes dois campos de conhecimento nem sempre é fácil e, em alguns casos, é totalmente inviável.
Recentemente, a redescoberta e o estudo sistemático de monumentos megalíticos funerários, no Amapá, trouxe, de forma muito decidida, a arqueoastronomia brasileira para o campo dos alinhamentos azimutais.
Efectivamente, no monumento AP-CA-18, o melhor conhecido, foram identificadas orientações solsticiais bastante consistentes, com a originalidade de, aparentemente, estas não se restringirem à relação com o horizonte; de facto, a proposta interpretativa dos escavadores (João Saldanha e Mariana Cabral), incorpora a possibilidade de a inclinação dos monólitos se ajustar à trajectória do Sol, em fase de declínio, no maior dia do ano.

No entanto, convém referir que, para além dos monumentos amapaenses, que tiveram, aliás, uma forte repercussão nos meios do megalitismo internacional, já havia alguns indícios de que existiriam, em diversas áreas do território brasileiro, monumentos de pedra que, embora não atingissem a escala dos grandes monumentos megalíticos europeus, ou mesmo dos do Amapá, se podiam integrar genericamente na mesma família.
A propósito destes casos menos conhecidos (e menos estudados) foram já, em todo o caso, tecidos alguns considerandos de tipo arqueoastronómico.

3. Os monumentos e as memórias
Os dois monumentos referidos por Protásio Frikel consistem, como já anunciei, em alinhamentos de blocos graníticos, implantados ao alto, orientados em função dos pontos cardiais, em áreas expostas a Nascente.
Em ambos, temos uma estrutura construída comparável à dos alinhamentos da Vendée, no Oeste francês; quanto à topografia do local de implantação – vertentes expostas a Nascente - as analogias estendem-se a boa parte dos conjuntos megalíticos europeus, nomeadamente nas regiões megalíticas excepcionais que são a Bretanha e o Alentejo Central.
Porém, ao contrário dos seus congéneres europeus, os alinhamentos dos Tiriyós encontram um suporte interpretativo muito consistente na etnografia local.
Nas palavras do informador de Frikel, "quando os Aibüba (os antepassados) moravam em Wáipa, houve uma noite muito longa. O Sol não quis aparecer. Eles saíram para o campo e se sentaram ali para esperar o aparecer da luz. Mas a escuridão não quis findar e os Aibüba não quiseram sair sem ver o nascer do sol. Assim ficaram sentados até se tornarem pedras. E lá ainda estão.
Este conjunto, formado por 52 pedras, ajusta-se ao eixo N-S e tem associados um círculo radiado, gravado na rocha, uma pia natural e um outro bloco, aparentemente também natural.
Se aceitarmos que o círculo radiado é uma representação solar, estaremos, pois, em presença de um caso em que se poderão aplicar dois dos campos em que habitualmente se move a arqueoastronomia: a iconografia e os alinhamentos azimutais.
Segundo Frikel, os índios "dividem estes 'transformados' em famílias e indicam quais os homens e quais as mulheres e crianças." O carácter arqueoastronómico do conjunto, aparente na análise etic dos vestígios, ajusta-se perfeitamente à tradição indígena.
Um outro sítio, descrito por A. Frikel, é conhecido como os Transformados de Manákamã: "tem uma extensão de 27 m e se compõe de 13 pedras"; "nos relatos da tradição fala-se também da noite comprida e do medo dos Aibüba. Estes (...) se sentaram sobre as pedras que serviam de bancos. Esperaram assim a luz e o Sol que demorou a vir. Esperaram até se tornarem em pedras como "encantados".
Note-se que, para além do simbolismo astronómico, sugerido pela orientação – comum a grande parte dos megalitos europeus – a tradição Tiriyó deixa muito claro o carácter antropomórfico dos blocos pétreos, assim como a metáfora social do conjunto.

4. O Tempo dos AstrosPara além de todo o potencial simbólico dos objectos e eventos celestes e, dentro destes, do Sol e da Lua, os astros proporcionaram, com base na observação dos seus movimentos cíclicos, o meio mais universal de medir o tempo e organizar calendários.
Os solstícios, os equinócios ou as pausas lunares foram os eventos astronómicos mais frequentemente fixados nos monumentos megalíticos, através dos alinhamentos azimutais. No caso dos monumentos da Savana Tiriyó, falta ainda confirmar, com meios técnicos de que Frikel não podia dispor, os verdadeiros azimutes; a interpretação daquele investigador sugere, de forma muito engenhosa, um ritual solsticial relacionado com latitudes mais elevadas, de onde propõe que os antepassados dos Tiriyó sejam oriundos.
Seja como for, o mais interessante nestes sítios cerimoniais é, na perspectiva em que aqui nos colocamos, o facto de o número de pedras, num e noutro dos alinhamentos descritos por Frikel, ser de 13 e 52.
Claro que não podemos descartar a possibilidade de se tratar de uma coincidência que só uma amostra maior poderia validar estatisticamente; porém, quer o contexto arqueológico (uma linha Norte-Sul, implantada numa encosta virada a Nascente, o território dos mortos), quer o contexto etnográfico (a observação do nascer do Sol) apontam para a existência de notações calendáricas.
Como é sabido, a articulação entre o ciclo anual (solar) e o ciclo mensal (lunar) que, de facto, não são coincidentes, foi resolvida de formas distintas, por diversas culturas, desde épocas muito antigas.
A divisão do ano em 13 meses, encurtados à medida deste propósito, foi uma das soluções (hoje muito em voga nos meios New Age, com base no calendário Maia). O acrescento de um décimo terceiro mês, foi outra.
O conceito de semana de sete dias, ecoando as quatro fases da Lua (embora o mês lunar seja de 29,5 dias, implica, por outro lado, 52 semanas no ano. Segundo E. Magaña, os Caribs costumavam distinguir precisamente quatro fases lunares.
Esta leitura que, no futuro, importa confrontar com o calendário tradicional dos Tiriyós, sugere, efectivamente, que estamos perante noções calendáricas relativamente complexas, de tipo luni-solar.
Convém não esquecer, em alternativa, que, no sistema Maia, existiam dois calendários: um deles, solar, com 18 meses de 20 dias e, um outro, ritual, com 13 meses de 20 dias.
Os dois calendários coincidiam de 52 em 52 anos.
Apesar de as distâncias (no espaço e talvez no tempo) entre os Maias e os Aibüba (os antepassados dos Tiriyó) serem muito consideráveis, é perfeitamente plausível uma relação, de qualquer tipo, entre ambos; na verdade, segundo relata G. Reichel-Dolmatoff, entre os índios Kogi, na Amazônia colombiana, existe igualmente um sistema com vários calendários, um deles também de 18 meses de 20 dias e outro de 13 meses de 29 dias.

5. Nota finalAs observações acima expostas constituem apenas um esboço, muito preliminar, de um estudo que precisa, no futuro, de vários desenvolvimentos.
Por um lado, é importante desenvolver trabalhos no domínio da arqueologia, de modo a estabelecer bases cronológico-culturais para os monumentos em causa; ainda neste âmbito, é fundamental contrastar os dados disponíveis com os outros dois monumentos referidos, mas não descritos, por Protásio Frikel, assim como com outros eventualmente por descobrir. As medições rigorosas e as relações com outros tipos de sítios arqueológicos (vestígios de aldeias e arte rupestre, sobretudo), assim como com elementos paisagísticos proeminentes, são, naturalmente, também fundamentais.
Por outro lado, é necessário aprofundar os estudos, iniciados por Frikel, no campo da etnografia Tiriyó e, de um modo mais amplo, na região amazônico-caribenha.
A confirmar-se a leitura aqui avançada, estaríamos em presença de um caso muito raro nos estudos arqueoastronómicos: para além das orientações azimutais e da iconografia, os sítios da savana Tiryió comportariam igualmente notações calendáricas. E, para cúmulo, com uma interessante contrapartida de base etnográfica.

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