quarta-feira, 11 de junho de 2014

Tïhtakariwaïn



Tïhtakariwaïn: um santuário rupestre no Tumucumaque brasileiro

Resumo: Neste artigo apresentam-se e discutem-se dois painéis de arte rupestre, localizados numa caverna granítica, em plena Terra Indígena Parque do Tumucumaque (Brasil). Trata-se de um projeto colaborativo que envolveu um grupo de índios Tiriyó e Kachuyana (povos de língua karib) e em que, a par de uma comparação com outros sítios de arte rupestre na região amazónica-guianense, se procuram sentidos interpretativos em articulação com a língua e a literatura oral destes povos, no quadro do pensamento ameríndio, em geral.
Palavras chave: Arte rupestre, Amazónia,  Etno-arqueologia, Chamanismo, Perspectivismo ameríndio

Tïhtakariwaïn: um santuário rupestre no Tumucumaque brasileiro

Abstract: This paper presents and discusses two panels of rock art, located in a granite cave in the Parque do Tumucumaque Indigenous Land (Brazil. This is a collaborative project involving a group of Trio and Kachuyana Indians (Carib language) and that, along with a comparison with other rock art sites in the Amazonian-Guyanese region, is seeking interpretative senses in conjunction with language and oral literature of these peoples, in the frame of the Amerindian thought in general..
Keywords: rock art; Amazonia; ethnoarchaeology, shamanism; amerindian perspectivism




Introdução
Tïhtakariwain é uma caverna formada por um caos de blocos graníticos, definindo sobretudo dois corredores ortogonais, cujas paredes se encontram parcialmente cobertas por gravuras rupestres, com temas figurativos e geométricos (e figurativos/geométricos).
Localiza-se numa plataforma, a meia altura de uma das primeiras elevações das montanhas do Tumucumaque, cobertas por floresta tropical, sobranceira à extensa área de savana, de relevo relativamente aplanado, onde se implanta, hoje em dia, a maioria das aldeias Tiriyó. O sítio dista, aliás, menos de um quilómetro de uma aldeia atual, denominada Ponoto.

 
             Fig. 1 – A vista para a savana, a partir da entrada da caverna (foto de Mariana Cabral).

                        Fig. 2 – A entrada da caverna de Tïhtakariwaïn (foto de Mariana Cabral).

Segundo a tradição dos Tiriyó (os Kachuyana e outros grupos menores instalaram-se recentemente na região), a caverna foi palco privilegiado das guerras com os vizinhos Wayana e o topónimo remete para um xamã (pïyai, em Tiriyó) com as pernas tortas, cuja figura se destaca na iconografia do sítio (Fig.5, nº5). Etimologicamente, o nome Tïhtakariwain parece incorporar  o verbo tïhta (morrer ou estar em perigo de morte) e kariwa, cabaça ou, alternativamente, kariwaja (planta com usos mágicos);
Os Tiriyó, autodesignados como Tarëno, são um povo de língua caribe que habita, junto com outros grupos minoritários, as margens dos rios, numa extensa área de savana, enquadrada por floresta tropical, de um e outro lado da fronteira entre o Brasil e o Suriname.
No lado brasileiro, foi criado, adjacente às Terras Indígenas, o Parque do Tumucumaque, considerado o maior parque de floresta tropical do mundo.
O Tumucumaque foi, sobretudo por razões de ordem geográfica (a dificuldade de acesso), uma das últimas fronteiras da literatura colonialista de viagens, gerando mitos românticos que só tardiamente foram ultrapassados.
Tive oportunidade de visitar a Terra Indígena Parque do Tumucumaque, por duas ocasiões, no Verão de 2009, no contexto de um curso de capacitação científica, dirigido aos professores indígenas. Com os alunos desse curso, organizado pelo IEPÉ (Organização Não Governamental ligada à USP), visitei, juntamente com Mariana Cabral, a caverna de Tïhtakariwaïn.
O levantamento das gravuras limitou-se, por falta de condições logísticas, a dois painéis, um no corredor de entrada e outro no corredor transversal, num total de cerca de 12 m2; a seleção e o decalque desses painéis foram executados, após uma formação expedita, pelos professores indígenas.

              Fig.3 – Explicando aos jovens Tiriyó a técnica do decalque sobre plástico cristal.

O resultado agora apresentado corresponde, na verdade, a um work in progress, em que, sobre a versão original gravada nas paredes da gruta, em época indeterminada, foi produzida uma primeira interpretação, pelos indígenas, em plástico cristal, que foi posteriormente interpretada em gabinete e digitalizada. Falta um retorno ao sítio para completar o levantamento e confirmar detalhes, nomeadamente sobreposições ou imprecisões de traços, nas partes já desenhadas; falta um novo diálogo com os donos do lugar: os Tarëno.
Na verdade, pretende-se apresentar aqui apenas alguns elementos de um esboço interpretativo, ainda em construção, e centrado, para já, nos únicos dois painéis desenhados.
Foram, dentro do possível, tidos em conta os vários modelos teóricos, em debate no estudo da Arte Rupestre, como fenómeno global; privilegiou-se, porém, uma focagem específica nas realidades arqueológicas e etnográficas ameríndias.
Nessa interpretação, foram convocados especificamente alguns elementos da literatura oral dos Tiriyó (Koelewijn e Rivière, 1987), contrastados com aspetos específicos da sua cultura (Grupioni, 2009) e, em particular, da sua língua. Neste último âmbito, a excelente obra (dicionário e gramática) de Sérgio Meira (1999), ainda inédita, foi uma ferramenta inestimável.
A gruta do Tïhtakariwaïn foi referida, pela primeira vez, por Protásio Frikel, missionário, etnógrafo e arqueólogo (Frikel, 1963), que estudou os Tiriyó e visitou o local; esses dados foram, mais recentemente, republicados numa obra de referência sobre a arte rupestre da Amazónia, no Pará (Pereira, 2003).
Frikel, descrevendo as suas observações, afirma que “’os sapos’ aí representados foram identificados pelos índios como ‘a velha que, nos mitos, era a dona do fogo e que, na sua incarnação zoomorfa, se manifesta como sapo cururu” (Frikel, 1963: 489). Este personagem existe igualmente entre os Wayana.
Porém, o sapo ficou fora do levantamento agora apresentado.
Segundo esse autor, os seus informantes Tiriyó atribuíram as gravuras aos antepassados dos Wayana (Frikel, 1963: 481); os meus informantes, por outro lado, sem esclarecerem diretamente a autoria das gravuras, atribuíram a ocupação da gruta aos antepassados dos Tiriyó, que aí teriam buscado refúgio dos ataques dos antepassados dos Wayana.
Como seria de esperar, as versões sobre o desfecho da guerra entre Tiriyó e Wayana são diametralmente opostas, conforme o ponto de vista. De um lado e de outro da “barricada” tudo acabou com a aniquilação total dos inimigos.
Em última análise, essa disjuntiva tem pouca substância, uma vez que as guerras em causa certamente remetem para uma situação anterior à etnogénese “definitiva” destes grupos, enquanto tal. Tiriyó e Wayana são conceitos que englobam povos de línguas aparentadas, ocupando tradicionalmente as mesmas áreas geográficas, em cuja génese a colonização teve, aparentemente, um papel importante.
Este quadro de partida, levou-me, naturalmente, a incluir, no roteiro da documentação a testar para a interpretação dos painéis, o extenso material recolhido no trabalho de Jean Chapuis e Hervé Rivière (1987), uma obra bilingue, profusamente anotada, assim como o trabalho, mais recente e mais problematizador, de Renzo Duin (2006).  

1.      Tïhtakariwaïn no quadro da arte rupestre guiano-amazônica
A primeira impressão, quando comparamos os motivos presentes na caverna de Tïhtakariwaïn, com o que se conhece, em termos regionais, é a de que não existe nenhum paralelo direto. É certo que permanecem muitas lacunas de prospecção e existem, previsivelmente, outros sítios ainda não registados.
Seja um caso isolado, produto do agenciamento humano, ou o representante de uma “família” ainda não descoberta, Tïhtakariwaïn apresenta muitas especificidades, embora, ao mesmo tempo, partilea certos detalhes com outros conjuntos conhecidos.
O “parente” mais próximo, à primeira vista, localiza-se, já no Suriname, mas em “território” Tiriyó, perto da aldeia de Kuamalasamutu: trata-se da caverna de Werepai (http://home.wxs.nl/~vrstg/guianas/werehpai/werehpai-eng.pdf).
Porém, os grafismos, num e noutro sítio, diferem substancialmente, apesar de partilharem o mesmo tipo de ambiente natural (caos de blocos graníticos) e, presumivelmente, a mesma área cultural (o suposto território dos antepassados dos Tiriyó e dos Wayana).
Werepai integra-se, quanto aos grafismos, razoavelmente bem no quadro daquilo que foi designado como “Tradição Amazônia” ou “Tradição Guiano-Amazônica” (Pereira, 2003; Prous, 2002), cujo principal traço definidor é a preferência pelos temas antropomorfos/zoomorfos, em que a representação da face desempenha um papel preponderante ou mesmo exclusivo.
 Na verdade, na sua versão mais esquemática, essas figuras resumem-se apenas ao esboço da cabeça (ou do cabelo) e aos olhos (Mazière, 2008: 137, fig. 172). Essa tendência parece manifestar-se numa área delimitada, com bastante rigor, a Sul, pelo Amazonas, e estendendo-se por toda a região guiano-amazónica, da Guiana Francesa até à Colômbia; o limite Norte, porém, aparece muito mal definido (Gomes, 2012).
Neste aspeto, as gravuras do Tïhtakariwaïn destoam totalmente das de Werepai: a maioria dos motivos, em particular aqueles que aludem à figura humana, apesar de terem a cabeça representada (numa escala que permitiria, sem dificuldade, traçar detalhes do rosto), não têm olhos, nem outras feições. Numas (Fig. 5, nº 4, 5), as feições (se alguma vez existiram) poderiam ter sido obliteradas por picotagem; noutras (Fig. 7, nº 1; e talvez Fig. 7, nº3), a face da figura parece estar oculta por uma máscara.
Em território Tiriyó, mas estendendo-se, para Sul, ao curso médio do Erepecuru, existe um conjunto de gravuras com uma personalidade muito própria, embora também enquadrável na referida Tradição guiano-amazônica. Nesse conjunto, predominam as figuras antropomórficas estilizadas, que assentam num grafismo semicircular radiado, representando uma face humana, eventualmente emplumada. Os olhos são sempre representados, ou sugeridos, e o corpo é pouco detalhado, reduzido ou inexistente.
Para além desse núcleo central, existem exemplares avulsos, a Oeste, no Trombetas (em território Wai-wai) (Pereira, 2003: 92), a Sul, em Prainha (Pereira, 2003: 185) e ainda, a Norte, na Guiana (Pereira, 2003: 84).
Em plena cadeia montanhosa do Tumucumaque, num abrigo rochoso, aberto na encosta de um inselberg granítico, existe um outro sítio que, por várias razões, é único na região guiano-amazónica: Mamilihpann (Mazière, 2008: 111-118). Trata-se de um conjunto de painéis pintados, em que não existem representações de faces, sendo as figuras humanas geralmente representadas em corpo inteiro, de formas muito esquemáticas.
Igualmente muito singular é o sítio das Roches du Marouini (Mazière, 2008: 99-110), também na Guiana francesa. As gravuras localizam-se a céu aberto, no cimo de uma montanha, e os temas são sobretudo zoomórficos, com alguns antropomórficos, quase todos de corpo inteiro, sem destaque para a face.
Estes dois últimos exemplares, note-se, dificilmente poderiam ser catalogados na Tradição Amazônia ou Guiano-Amazônica, tal como ela vem sendo definida.
Uma última referência a outro sítio singular: a Pedra do Índio, em Ferreira Gomes, AP. Trata-se de um lajedo granítico em que os temas são sobretudo de natureza geométrica, sugerindo, muitos deles, jogos gráficos (alguns claramente figurativos) com elementos geométricos simples: círculos, espirais, estrelas, etc.
As diferenças entre os conjuntos mencionados (descontando as diferenças de suporte e de técnicas utilizadas) refletem certamente temporalidades diversas, identidades diversas, funcionalidades diversas.
Mais à frente, na análise detalhada dos dois painéis objeto deste trabalho, apontarei algumas semelhanças, marcas de uma eventual “estética ameríndia” (Gomes, 2012; Grupioni, 2009) iluminada por um eventual pensamento ameríndio (Viveiros de Castro, 1996; 2002). 

2.      Ideias, métodos e inspirações
O espaço deste artigo não permite discutir convenientemente todos os aspetos teóricos e metodológicos envolvidos.
Fica claro que se trata aqui de um exercício interpretativo, no domínio da arte rupestre, a partir dos textos, da língua e da memória das pessoas.
Existem, é certo, problemas epistemológicos (e outros) a considerar (Echo-Hawk, 2000; Harrison e Schofield, 2009).
Porém, para encurtar caminho, presume-se a “existência de um fundo cosmológico comum panamazônico, de longa duração temporal e em permanente mudança histórica, embora marcado por lacunas ou descontinuidades geográficas, que possui, além de um valor etnográfico, uma expressão estética” (Gomes 2012: 2).
Estamos pensando, claro, no perspetivismo ameríndio (Viveiros de Castro, 1996, 2002, 2004), um dos pontos fortes da agenda antropológica americanista (ou amerindianista) atual.
Não é nova a ideia de pensar o perspetivismo ameríndio na perspetiva da arqueologia (Barreto, 2009; Gomes, 2012). Esse exercício foi, sobretudo, aplicado ao universo da cerâmica pré-colonial amazónica. 
Enrico Comba (2014), invocou, recentemente, as eventuais vantagens de aplicar o perspetivismo ameríndio ao estudo da arte paleolítica europeia.

Testar a sua aplicabilidade à arte rupestre amazônica é um outro passo, certamente mais curto, e, aparentemente, mais sustentável (Valle, 2012).
Pensando na interpretação da arte rupestre, salta a vista a importância, neste modelo, da relação entre os humanos e os animais, sobretudo (mas não apenas) quando se trata de interpretar os omnipresentes zooantropomorfos.
O perspectivismo ameríndio foi, na sua génese, o resultado de uma análise global das muitas e variadas etnografias amazónicas (incluindo, expressamente, os Tiriyó) que, apesar das distâncias geográficas e linguísticas, apresentam muitos mitos e crenças comuns (Viveiros de Castro, 1996; Halbmayer, 2012).
O autor do conceito, numa interessante reflexão sobre o mesmo (Viveiros de Castro: 2002; 122, 123), conseguiu repetir, em apenas seis linhas de texto, oito vezes a mesma expressão:" ponto de vista". O artifício literário não me parece inocente: do meu ponto de vista, ele sublinha a verdadeira importância do olhar e dos olhos, para o caçador amazónico.
Na língua Tiriyó, como notou Denise Grupioni (2009: 22), o olhar e o olho (ene, enu) estão na raíz de alguns conceitos fundamentais, como, por exemplo, enpa (ensinar) e ëenpa (aprender); para além destes, acrescente-se ainda enu(ru) (nascer), enta (acordar), enuta (lembrar), para além de outros casos análogos em Wayana (Chapuis e Rivière, 2003: 429), ou em Waiwai (Zea, 2010).
Porém, o exemplo mais interessante, quando pensamos na arte rupestre guiano-amazônica, é a palavra “face” que, em Tiriyó, se diz enpata. Isto é, à letra, “o lugar dos olhos”.
Do meu ponto de vista, parece claro que o perspectivismo amazónico faz parte da própria estrutura das línguas indígenas. Orais ou “escritas”
Na verdade, no que diz respeito à relação homem/animal, a língua Tiriyó tem várias formas para expressar aquilo que Philippe Descola caracterizou como próprio de “sociedades pré-modernas, (...), encarando os animais não como sujeitos de direito tutelado, mas como pessoas morais e sociais plenamente autônomas” (Descola 1998: 25).
Por um lado, no emprego de pronomes, distinguindo-os entre animados e inanimados. Por exemplo, akï? “quem?” (animado) e atï? “que coisa?” (inanimado). Homens e animais estão na mesma categoria gramatical.
Por outro lado, os nomes, em Tiriyó, podem ser obrigatoriamente possuíveis, optativamente possuíveis, ou nunca possuíveis. Os animais, como seria de esperar, encontram-se nesta última categoria.
Segundo o linguista que estudou o Tiriyó, while reading Tiriyó texts, one has the impression that animal names are not simple nouns, but really represent sometimes ‘animal tribes’, similar to, e.g., tarëno ‘Tiriyó’, waijana ‘Wayana’, etc., and sometimes individuals, like personal names” (Meira 1999: 244)
Ou ainda “in some stories, vocative terms for animals occurred (e.g., iwa ‘iguana-voc’, corresponding to iwana ‘iguana’); kinship terms are the only other group of nouns with vocative forms” (Meira 1999: 244)
Esta fossilização do perspectivismo na estrutura gramatical do Tiriyó, implica certamente, alguma profundidade temporal. Espera-se, claro, que ela seja compatível com a idade das gravuras do Tïhtakariwaïn.
A relação entre as gravuras e a língua (e a literatura oral) é certamente mais problemática. Desde que foram pensadas e executadas, as gravuras mantiveram-se virtualmente inalteradas (Larsson, 2004). As línguas e as narrativas, presumivelmente, não.
É interessante verificar que, entre os especialistas de arte rupestre (ou de arte indígena) é fácil encontrar expressa, de forma mais ou menos metafórica, a ideia de uma certa identidade entre arte gráfica e escrita.
Limitando a pesquisa a investigadores trabalhando atualmente na região, em sentido amplo, e começando pelos arqueólogos:
a)      “La lente et complexe invention de l’écriture n’a été, ni la première ni la seule forme que l’homme a trouvé pour communiquer au moyen de signes tracés” (Mazière 2008: 141);
b)      “essa forma de linguagem possui uma gramática gerativa e estrutural que pode ser estudada e compreendida.” (Schaan 2001: 8);
c)      “the study of a native language present in paintings and engravings” (Muñoz 2010: 933);
d)     “ as tradições de pintura e gravura pré-históricas poderiam ser comparáveis a famílias linguísticas, no interior das quais as línguas evoluem” (Pessis e Guidon 1992: 21).

Passando pelos antropólogos:
a)      “uma concepção de iconografia e de grafismos indígenas definidos como veículos de comunicação visual estética.” (Vidal e Silva, 2007 : 283);
b)      “o kusiwa, arte gráfica que é aplicada sobre diferentes suportes (corpo, cerâmica, cabaça e, hoje em dia, papel), pode ser traduzido como representação gráfica abstrata, e inclui outras formas de representação alheias à tradição do grupo, como a escrita”.(Gallois, 2007: 210);
c)      Os “Kayapó (…) possuem uma palavra para pintura, No’ok, e (…) esta palavra somada à palavra folha, Pi’ok, é que deu origem à palavra Pi`okno`ok, que poderíamos traduzir como escrita no papel.” (Ferreira, 2010: 47).

Nos dois últimos exemplos, para além da opinião dos antropólogos, está sobretudo expresso, através da língua, o ponto de vista dos índios. De fato, a introdução da escrita, entre estes povos, foi conceptualizada como mais uma forma de desenho ou pintura. Ou, se preferirmos, mais uma forma de escrita.
Em Tiriyó, como seria de esperar, menuhte, significa desenhar, pintar ou escrever.
Posto isto, é claro que a arte rupestre não se esgota nas suas eventuais funções enquanto forma de comunicar e de arquivar memória.
Há que pensar nas práticas e crenças xamanísticas, omnipresentes nas sociedades indígenas da região e tidas como elemento-chave para a interpretação da arte indígena (Reichel-Dolmatoff, 1975). Há que pensar, claro, na dimensão social e política. Há que pensar na criatividade individual e coletiva. Há que pensar nas limitações e possibilidades da própria expressão gráfica.


3.      O lugar do Mito

Le Piyanakoto est déjà rentré dans la caverne. Kailawa est mortifié.
Ils veulent casser le roc, ils ont bien vu par où il est reparti,
mais il est (déjà) rentré dans la caverne.
> (Kailawa et ses hommes) brisent pourtant (ce qui obstrue) l’entrée, en vain,
ça ne cède pas parce que le rocher est épais.
Comment (faire) ? Il y avait sans doute quelque chose qui permettait d’ouvrir
de l’intérieur, et qui a été fabriqué autrefois !
> C’est pour ça que ça s’est relevé dès que (l’assassin) est entré, bien que ce soit épais et lourd ; ces choses-là ne peuvent être soulevées (comme ça) !
Des bois sont essayé en vain, les massues se fracassent, ça ne sert à rien !
Dedans (la caverne, les Piyanakoto) font du vacarme. 
(Chapuis e Rivière, 2003: 711)

L’endroit est dégagé parce que c’est une colline.
La montagne est ainsi, et parce que ça se passe dans la vallée,
(Kailawa et ses hommes) le voient, à lui.
(Sikëpuli) se pare: il attache ses jambières, sa ceinture,
> accroche sa parure d’oreille, là et là.
Son casse-tête est de ce côté-ci, sa parure d’oreille de ce côté-là,
mais on ne sait pas comment il peut tenir (ses armes) quand il combat”

(…) ”Puis (Sikëpuli) danse comme cela et les parures d’oreille tintent…
parce qu’il a déjà (mis) ses parures d’oreilles

(Chapuis e Rivière, 2003: 723)

Estes dois excertos fazem parte do conjunto de narrativas dos Wayanas focadas na guerra entre eles e os Tiriyó. O episódio evocado assinala o final do ciclo das guerras fratricidas e o início de uma nova era de paz (Chapuis e Rivière, 2003: 729).
Segundo se conta, entre os Wayana, os Tiriyó (Piyanakoto) esconderam-se numa gruta e bloquearam a entrada. Kailawa, o herói Wayana, incapaz de resolver o problema, chamou para o efeito um outro demiurgo, Sikëpuli, que, antes de desfazer a rocha com a sua borduna mágica (que emite raios) e liquidar os refugiados, prepara a parafernália para a ação: cinto, perneiras, brincos, borduna.
É sugestivo, como hipótese de trabalho, identificar o cenário desta história com a caverna de Tïhtakariwaïn, aceitando, pelo menos até nova ordem, a interpretação dos próprios Tiriyó.
Antes de mais, porque:
a)      é uma gruta suficientemente espaçosa para acolher um número razoável de pessoas;
b)      apresenta uma entrada estreita cujo bloqueio teria sido viável
c)      se implanta na interface entre a montanha/floresta e a planície/savana).

Note-se que o informador de Jean Chapuis, Kuliyaman, indicou uma localização diferente, algures mais a Leste, junto à nascente do Mapahony, entre as  nascentes do Litany e as do Jari  (Chapuis e Rivière, 2003: 729); este deslocamento geográfico pode, porém, dever-se ao fato de Tïhtakariwaïn ficar, atualmente, fora do território ocupado pelos Wayana. Na verdade, seria interessante testar se, junto às nascentes do Mapahoni, existe alguma outra caverna candidata ao título.
Convém anotar que o fato de ter eventualmente servido como cenário de guerra, não retira o caráter xamânico que os Tiriyó lhe atribuem e que o nome indiretamente pode evocar.
De resto, a guerra, nessas narrativas, era inseparável de práticas mágicas.
De acordo com Jean Chapuis, “Kailawa est le maître des ‘hemït’ (…) Aucune expédition de guerre, d’une façon générale, n’était envisageable sans ‘hemït’”  (Chapuis e Rivière, 2003: 757) e “les chamanes étaient indispensables à la préparation de toute attaque, chez les Wayana comme dans la plupart des groupes Amérindiens  (Chapuis e Rivière, 2003: 769).
Os hemït eram, para os Wayana, unguentos, feitos sobretudo com plantas mágicas, que se passavam no corpo dos guerreiros, para estes adquirirem capacidades sobrenaturais.
A kariwaija, que, como referi, parece integrar o nome Tïhtakariwaïn, é uma “species of plant used by shamans for witchcraft” (Meira, 1999). Num dos textos da literatura oral Tiriyó, o dos “Irmãos que viajaram para o céu”, a kariwaija aparece listada como um dos ingredientes do produto que permitiria aos protagonistas levantarem voo (Koelewijn e Rivière, 1987: 174).
Guerra e xamanismo (Fausto, 2000). Tïhtakariwaïn.


4.      Risco a Risco

Interpretar significa, entre outras coisas, correr riscos. É possível, com base nos argumentos acima expostos, que a caverna de Tïhtakariwaïn tenha sido cenário dos “fatos” descritos na literatura oral, ou até que os tenha inspirado (Valle, 2012: 440).
Na verdade, costuma considerar-se que a epopeia de Kailawa, o herói fundador da “nação Wayana”, se reporta a uma época relativamente recente, eventualmente meados do sec. XIX, ou, de qualquer modo, a uma fase em que se supõe que já ninguém fazia arte rupestre; tendo isto em conta, mas mantendo algumas reservas, convém admitir que as gravuras podem ser anteriores ao mito ou que o mito possa ter fundido eventos de tempos diferentes.
Nas próximas linhas, vamos analisar e comparar alguns dos elementos que compõem os dois painéis em apreciação, elencando pistas para uma interpretação possível.



                                                      Fig.4 – O Painel A

O Painel A representa uma cena complexa, da qual se destaca o próprio Tïhtakariwaïn, o “xamã das pernas tortas” (na expressão dos meus informantes) em baixo, à direita. Esta figura, à partida, pela sua proeminência, poderia corresponder ao Kailawa do mito Wayana, uma vez que ele era o modelo perfeito do xamã e do guerreiro.
Segundo parece, entre os Wayana, “les chefs combattaient rarement et demeuraient à l’écart du lieu des affrontements.” (Chapuis e Rivière, 2003: 751, nota1836). Esta suposta atitude contemplativa e a posição descentrada em relação ao resto da cena, condiz razoavelmente com a imagem.
Porém, apesar de separado espacialmente, estabelece-se uma ligação, a partir do toucado de penas, com o resto da cena, como se o personagem a estivesse pensando ou sonhando. Na verdade, estaria provavelmente “vendo”, uma vez que o líder guerreiro, em Wayana, era designado como “ënetën, ‘celui qui regarde’, ‘celui qui voit’ ” (Chapuis e Rivière, 2003: 429)

Ao lado do personagem principal (Tïhtakariwaïn/Kailawa), destaca-se outra figura (Fig.5, nº 4), em plena ação. Tem ambos os braços levantados e, numa das mãos, um bastão longo que brande, aparentemente, contra o labirinto (Fig.5, nº 3). Seguindo o mito Wayana, seria Sikëpuli, o demiurgo amigo de Kailawa que o ajudou a vencer os Tiriyó, rompendo as rochas que bloqueavam a caverna, com o seu bastão mágico que expelia raios.
Esta figura tem algumas caraterísticas gráficas relativamente comuns no contexto amazónico-guianense.
A cabeça triangular, por exemplo, é um elemento que percorre toda a região, a Norte do Amazonas, em paralelo com as figurações de caras mais ou menos circulares. Na Guiana Francesa, o sítio de La Carapa (Mazière, 2008: 27), apresenta uma notável gama de variantes com antropomorfos de cabeça triangular.
Também o corpo lenticular segmentado longitudinalmente é relativamente frequente na arte rupestre amazónica e guianense, com paralelos na Guiana Francesa (Mazière, 2008: 41) e em Monte Alegre (Pereira, 2003: 140, 154), mas também a Sul do Amazonas, em Altamira (Pereira, 2003: 175); na Ilha dos Martírios, essa solução gráfica aparece usada num zoomorfo (jacaré) (Pereira, 2003: 112).
  Este personagem parece agir diretamente com a figura do labirinto (Fig. 5, nº3) que poderíamos interpretar como uma simbolização da caverna: com dois corredores ortogonais, o maior deles ligado à entrada estreita, representada na parte superior do labirinto. Em volta da gruta, o caos de blocos. É possível que a estrutura da gruta fosse comparável a uma cabaça (kariwa), metáfora que podia corresponder, graficamente, à parte central do labirinto.
Acima do labirinto parece desenrolar-se uma cena de luta (Fig.5, nº 2), envolvendo dois ou três antropomorfos. Esta cena poderia aludir ao extermínio dos sitiados.
Em baixo (Fig.5, nº 6), aparece uma cabeça triangular com apêndices auriculares, invertida e sem corpo. Poderia tratar-se também de uma alusão aos vencidos, um cadáver no campo de batalha.
Por último, no canto superior esquerdo da cena, fazendo pendant com o Tïhtakariwaïn, destaca-se um veado, de cabeça para baixo. Para esta figura, porventura a mais enigmática do conjunto, não encontrei paralelos na iconografia amazónica. Por outro lado, o veado também está ausente dos mitos dos Tiriyó e dos Wayana a que tive acesso.
Porém, tanto para Norte, como para Sul, o veado é um grande tema da arte rupestre ameríndia (e, até certo ponto, global). Na Colômbia, por exemplo, os índios  Tunebo, acreditam que quando um veado morre, a sua alma vai para as montanhas e transforma-se num humano (Marriner, 2002: 33).
Segundo André Prous, “in central Brazil, the more praized animals for indian hunters are deer, peccari (wild american pigs) and tapir. But in the rock art of Minas Gerais state, deer are the dominant painted animals in Planalto tradition, while pecaris are quite completely absent and tapir cannot be seen;” (Prous 2002: 9).
A posição claramente superior desta figura parece relacioná-la com o céu (kapu). Na verdade, a sua posição invertida tanto pode implicar que está caindo do céu como que está subindo ao céu. Poderia tratar-se de um demiurgo (tal como o sapo registado por Frikel) eventualmente esquecido no mito Wayana? Ou as almas dos mortos subindo para Leste? Este é certamente um tema que exige futuros desenvolvimentos.
Por último, em volta das personagens  identificadas, espalham-se várias figuras simples que parecem remeter para a parafernália guerreira: machados, bordunas, etc. Veja-se a importância atribuída, no mito Wayana acima apresentado, aos detalhes do aparato guerreiro e xamânico, antes de Sikëpuli entrar em ação.




                        Fig.5 - Painel A: detalhes analisados no texto (realçados a negro).


Do ponto de vista exclusivamente gráfico, a figura do Tïhtakariwaïn destaca-se pela sua originalidade, embora reproduzindo uma característica muito recorrente na chamada Tradição Amazônia, a par da já comentada representação das faces oculadas: trata-se do uso de formas geométricas básicas (círculos, triângulos e, sobretudo espirais) para construir graficamente figuras esquemáticas, mas reconhecíveis.
 Essa tendência, com resultados análogos, verifica-se também nos motivos gráficos dos povos indígenas atuais. Segundo Denise Grupioni:
Tanto entre os Tiriyó, quanto entre os Kaxuyana encontramos um padrão recorrente de desenho que se situa entre o grafismo e a figura, por ser formado a partir de traçados geométricos que acabam por compor uma imagem por inteiro de animais ou seres primevos. Esse padrão (…) se destaca tanto do repertório de motivos gráficos, quanto do repertório de motivos figurativos por mesclar duas categoriais num único desenho: imenu e ikuhtu grafismo e imagem. (Grupioni, 2009: 45)
No caso concreto do Tïhtakariwaïn, a figura humana foi estruturada por um par de espirais duplas, justapostas simetricamente. Encontramos variantes dessa solução gráfica, mas mais estilizadas, em alguns exemplares do Erepecuru, na Cachoeira do São Nicolau (Pereira, 2003: 74) e, de uma forma elementar, na Pedra do Índio, Amapá (Fig.6).

No Rio Negro, este grafismo foi considerado o “mais epidêmico”, transversal às fronteiras geológicas (Valle, 2012: 441; 456

.

                     Fig.6 - Motivo com duas espirais duplas, na Pedra do Índio, Amapá.

De resto, este mesmo tipo de jogo gráfico surge também, por exemplo, de várias formas, na cerâmica Marajoara (Shaan, 2001).
Mais frequente ainda, na arte rupestre regional, são os jogos de espirais desenhando faces humanas ou, no limite, apenas pares de olhos. Vejam-se, por exemplo, os casos de Monte Alegre (Pereira, 2003: 136; 150), Portel (Pereira, 2003: 207), Trombetas (Pereira, 2003: 97) ou Erepecuru (Pereira, 2003: 77). Mais uma vez, na sua forma mais despojada, atente-se no exemplar da Pedra do Índio (Fig.7)

                                     Fig.7 – Par de espirais da Pedra do índio.

O Painel B tem igualmente um personagem central, presumivelmente um xamã guerreiro (Fig. 9, nº1), atendendo aos adereços: máscara (de bambu), borduna e maraca (Fig.9, nº2). À sua volta, são vários os items que podem corresponder ao paramento dos guerreiros, nomeadamente machados e outros artefactos ainda não identificados. 

                                                     Fig. 8 – O Painel B.

               Fig. 9 – Painel B: detalhes analisados no texto (realçados a negro).

A “couraça de bambu” aparece referida diretamente no texto Tiriyó que fala da guerra com os Wayana (Koelwijn e Rivière, 1987: 262). Por outro lado, na toponímia local, Pononpë, um local junto ao Paru de Oeste, onde existem gravuras rupestres (Pereira, 2003: 91), significa, segundo me informaram os Tiriyó, “máscara de guerreiro”.
Quanto aos machados de pedra (tïpkëtë), eles aparecem referidos, en passant, como fazendo parte do arsenal bélico wayana (Chapuis e Rivière, 2003: 545). Nos textos Tiriyó, em contrapartida, existe uma história que envolve um machado de pedra mágico usado para a abertura da roça.
A importância simbólica do machado de pedra, nas antigas sociedades de horticultores, derivou inicialmente da sua importância na preparação dos terrenos agrícolas. Como outros artefactos especiais, os machados ganharam, muitas vezes, um certo estatuto de gente (Pétrequin e Pétrequin, 2006).
Na arte rupestre regional, os machados e outras armas aparecem representados com alguma profusão, nas Roches du Marouini (Mazière, 2008: 103, 104), um conjunto que, como já referi, tem uma personalidade muito própria.
No caso concreto do Painel B, o personagem-herói poderia ser outra vez Kailawa, aqui representado, eventualmente, na sua missão de pacificador dos povos, missão que, na lógica Wayana, foi o corolário da sua intensa atividade guerreira.
Para além dos adereços da praxe (entre os quais, as armas, mas também os paramentos de orelhas e a maraca), o herói contracena com três figuras que, apesar de apresentarem estruturas semelhantes, são bem distintas entre si. Estas figuras poderiam representar linhagens ou clãs (passe ao lado a discussão teórica sobre a propriedade destes conceitos), com algum eventual parentesco com os chamados “postes totémicos”, tão caraterísticos da Columbia Britânica, e que Denise Gomes trouxe à colação, a propósito da iconografia da cerâmica amazónica (Gomes, 2012: 149-154)
Todas apresentam, de baixo para cima, a mesma sequência; uma base diferenciada, seguida de três elementos de recorte antropomórfico, mais ou menos em X, seguidos de um outro diferenciado e terminando todos eles com uma figura sobressaindo da sequência: um serpentiforme (Fig.9, nº 2), um arboriforme (Fig.9, nº4) e um possível antropomorfo (Fig. 9, nº5).
Cada um dos elementos em X contém, só por si, uma sugestão antropomórfica. Porém, as três figuras poderiam ser organizadas em função do caráter mais ou menos explícito de outro elemento com carga antropomórfica: os pares de espirais. Na Fig. 9, nº 4, os dois pares de espirais sugerem uma figura semelhante ao Tïhtakariwaïn; na figura 9, nº 5, existe apenas um par de espirais, mas na mesma posição relativa que na figura anterior; por último, na Fig. 9, nº 2, as espirais estão ausentes, mas o resto apresenta o mesmo tipo de sequência.  
Segundo a literatura oral Wayana, a estratégia de Kailawa, para acabar com a guerra endémica entre os grupos, mais ou menos aparentados, foi exterminar todos os adultos e perfilhar as crianças, por forma a manter as diferentes linhagens ou clãs, mas eliminando os ciclos de vingança que perpetuavam os conflitos.
Numa leitura geopolítica atual, considerando que os processos de etnogénese, mesmo que estimulados pela pressão colonial, deram continuidade a um processo endógeno, poderíamos considerar que os três emblemas remetiam para as raízes daquilo que são hoje os Wayana, os Apalaí e os Tiriyó, todos eles com alguma identidade linguística e cultural.  
Ou, numa perspetiva mais Wayana, poderiam eventualmente corresponder a outra tríade que parece ter emergido na reorganização, após a fase mais conturbada. Na verdade, os Wayana estão, hoje em dia,
unis au sein de fédérations qui occupent l’espace politique régional : Apalai sur le Parou de l’Est, Upului sur le Jari, Vrais Wayana (…) sur le Litany et le Marouini, pour ne citer que les plus puissantes de celles qui nous concernente directement dans ce travail” (Chapuis e Rivière, 2003: 779)

5.      Concluir é preciso
Como referi, no início, este é um trabalho em curso. Um primeiro olhar. Outros dados e outras leituras, atualmente em avaliação, ficaram de fora, como é manifestamente, o caso dos alinhamentos de pedra (Frikel, 1961; Calado, 2002, 2009; Scarre, 2004).
Warunao, significa, em Tiriyó, “o lugar escuro em que o xamã faz o seu trabalho” (Meira, 1999). O Tïhtakariwaïn é tipicamente, nesse sentido, um santuário.
 Estes personagens sem rosto (e, sobretudo, sem olhos) parecem contradizer uma das propostas avançadas neste trabalho, isto é, de que o perspetivismo amazónico se refletiu na frequência com que as figuras oculadas ocorrem na arte rupestre regional.
Porém, na caverna de Tïhtakariwaïn, a opção foi a inversa. De uma forma que parece intencional, considerando os temas e a escala.  
Este sítio parece encenar, embora pela negação, essa obsessão pelo olhar, tão típica do pensamento amazónico.
A interpretação produzida para os dois painéis parece encaixar, com muita verosimilhança, na narrativa da gesta de Kailawa. Recorde-se que, nesse registo, o evento do massacre dos Tiriyó não é um episódio avulso, mas marca o momento em que, de forma trágica (para os vencidos) se encerra, por processos mágicos, um ciclo tenebroso de violência (painel A) e se inicia uma fase de convivência pacífica (painel B).
É claro que se trata apenas de dois painéis, apesar de ambos muito coerentes, num conjunto bastante mais vasto. É como se, de uma HQ, tivéssemos lido apenas duas pranchas. Resta ver o que a análise dos restantes painéis nos reserva.

Metaforicamente, há muita pedra para quebrar.
Ficam, porém, algumas sementes a desenvolver em próximas etapas: a relação entre as línguas indígenas e a arte rupestre é um dos troncos a fazer crescer, assim como a dupla aproximação da arte rupestre, aos grafismos indígenas, por um lado, e à literatura oral, por outro.
Neste processo, os indígenas já estão participando: desde logo, através das memórias escritas e da própria língua. Participaram, de forma mais personalizada, na escolha dos painéis a decalcar e na forma de o fazer. Na transmissão de tradições. Foram eles, claro, que decidiram levar-me lá.
Concluo, agradecendo, primeiro, aos Tiriyó a oportunidade de os conhecer um pouco e partilhar com eles esse esforço de olhar atentamente para os vestígios dos antigos.
Agradecendo, e muito, ao IEPÉ, em particular às Professora Dominique Gallois e Denise Grupioni. E aos antropólogos que, de um modo geral, me têm, perspectivisticamente, ajudado a ver um mundo fascinante. Sem deixar, espero, de ser arqueólogo.


Referências

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4 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
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ola, gostei é interesante
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Estimado Prof. Manuel,

Este seu artigo é interessantíssimo e o uso na disciplina de Arte Rupestre para discutir com os alunos de Arqueologia da Ufopa, já há alguns anos. Sempre resulta em conversas instigantes.

Grande abraço

Raoni Valle