segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Geoglifos





















Arqueologia da Amazônia Ocidental: os Geoglifos do Acre
Denise Schaan, Alceu Ranzi, Marti Parsinen

Tive o privilégio de assistir ao lançamento desta obra, na Biblioteca da Floresta (Rio Branco), no Verão de 2008. Testemunhei, assim, o elevado interesse com que ela foi recebida pelo público presente, traduzido numa participação muito ativa, por vezes emocionada, de pessoas de diversas áreas da cultura e da política locais.
O tema central deste trabalho - os “geoglifos” - se vier a ser bem aproveitado, poderá com certeza assumir uma importância significativa no desenvolvimento sustentável da economia da Amazônia Ocidental, em termos turístico-culturais.
A história destes monumentos é aqui contada a várias vozes e sob diferentes perspectivas.
O livro, que possui um cuidadoso aspecto gráfico, abre com uma apresentação do Governador do Estado do Acre, licenciado em História e, também por isso, muito bem colocado para entender o que está sendo discutido: mostra que as instituições estão vivamente interessadas em construir as pontes necessárias entre os interesses estritamente culturais e científicos e os interesses mais complexos de uma sociedade democrática.
Depois de uma introdução esclarecedora, assinada pelos organizadores, a Professora Denise Schaan traça, de forma muito pedagógica, um quadro geral sobre a história da investigação arqueológica no Estado do Acre, com uma focagem mais aprofundada no tema dos “geoglifos”. Para além dos dados de carácter historiográfico, esse texto resume o estado atual da pesquisa, sintetizando as principais problemáticas com que ela terá que lidar no futuro.
Entretanto, além desta síntese, o livro recuperou seguidamente alguns textos fundamentais, já publicados, mas, por diversas razões, de difícil acesso.
Um destes – o primeiro texto publicado sobre os monumentos acreanos – é da autoria do Professor Ondemar Dias (em parceria com Eliana Carvalho) que, nos tempos pioneiros do PRONAPABA (já com a participação, como estudante, do Professor Alceu Ranzi) colocou a primeira pedra no edifício. Trata-se de um artigo publicado em 1988, com algumas observações e hipóteses interessantes para a interpretação funcional dessas estruturas de terra.
O livro reedita também um texto de Alceu Ranzi e Rodrigo Aguiar, publicado numa discreta revista portuguesa de arqueologia, de vocação regionalista, em que os autores, apesar de não serem arqueólogos, colocam diversas questões de fundo, de que as mais interessantes serão, a meu ver, aquelas que derivam da relação entre os “geoglifos” e a paisagem.
O Professor Alceu Ranzi foi, indiscutivelmente, o principal divulgador destes vestígios, desempenhando, neste processo, um papel inestimável na sensibilização das populações e dos seus representantes políticos, atendendo à sua dupla condição de acreano e investigador universitário. Note-se que, para além da dimensão científica, tendencialmente neutra, o Patrimônio tem implicações afetivas que justificam, em parte, o seu reconhecimento social.
Num registro mais arqueológico e revelando, aliás, um bom conhecimento da bibliografia científica pertinente, segue-se na obra um artigo (publicado anteriormente em inglês), da autoria de investigadores da Universidade de Helsínquia (com a colaboração de Alceu Ranzi).
Os autores, coordenados pelo Professor Martti Pärssinen, cuja investigação se tem centrado, há já alguns anos, em temas relacionados com o contexto macro-regional, nos países vizinhos, desenvolvem aqui algumas hipóteses relacionadas com a complexidade social na terra firme amazônica, recorrendo à análise das fontes históricas, traçando uma síntese da agenda da arqueologia amazônica, nas últimas décadas, e articulando essa revisão com a primeira (e única, até ao momento) datação radiocarbônica disponível para os “geoglifos” do Acre.
Em seguida, Denise Schaan relata a sua experiência num projeto de Arqueologia de Salvamento que teve como objetivo a proteção do patrimônio arqueológico, em função dos trabalhos de implantação de uma linha de transmissão de energia elétrica. O artigo serve também de pretexto para a autora apresentar e discutir os fundamentos legais deste tipo de intervenções, assim como a sua aplicação concreta. Infelizmente, nem sempre existe uma perfeita compreensão, por parte das entidades promotoras de projetos de desenvolvimento, da importância da salvaguarda do patrimônio cultural, mesmo quando – e foi esse o caso – se trata de empresas governamentais.
Finalmente, no que diz respeito aos artigos, temos um interessante exercício de articulação entre etnografia e arqueologia, que é, aliás, uma caraterística recorrente na investigação amazônica: Pirjo Virtanen, investigadora finlandesa, procura desvendar os eventuais fios condutores entre os “geoglifos” e os povos indígenas da região, em particular os Manchineris (do tronco Aruak). Esses links, ainda certamente muito frágeis, poderiam, segundo a autora, encontrar-se na valorização econômica e simbólica das palmeiras – frequentemente encontradas associadas aos “geoglifos” -, na existência de terreiros de dança, na tradição Manchineri, assim como na lenda de que esse povo escavaria esconderijos, para se proteger de inimigos.
Com a finalidade de contextualizar arqueologicamente os “geoglifos”, o livro fornece ainda uma relação com todos os sítios arqueológicos conhecidos no Estado do Acre e, em anexo, apresenta uma Recomendação do Ministério Público sobre a proteção do Patrimônio Histórico-Arqueológico, assim como uma extensa Documentação Fotográfica com os principais monumentos.
O leitor terá certamente reparado nas aspas que usei sempre que mencionei a palavra “geoglifos”; na verdade, na minha opinião, essa designação não será a mais adequada, embora se trate, evidentemente, de uma opção compreensível. De resto, o Professor Alceu Ranzi deixou bem expresso que escolheu ela porque “os geoglifos de Nasca, Peru (…) tornaram-se famosos no mundo todo por sua beleza e mistério” e a proximidade geográfica entre o Acre e o Peru suportam, naturalmente, esta associação. Não esqueçamos que Alceu Ranzi, acreano de alma e coração, se tem empenhado na divulgação e promoção de um patrimônio que indiscutivelmente o merece.
Na minha opinião, os monumentos do Acre apresentam diferenças notórias, em relação aos verdadeiros geoglifos: não existem aqui os característicos desenhos zoomórficos de Nasca e estes, por outro lado, não implicaram o enorme esforço “construtivo” que está patente em muitas das estruturas de terra amazônicas. É certo, porém, que, nos Estados Unidos da América (nomeadamente no Ohio), existem construções de terra representando figuras zoomórficas que, de algum modo, poderiam fazer a ponte entre as do Acre e as de Nasca.
Por outro lado, tanto o descobridor dos “geoglifos”, Ondemar Dias, como os investigadores finlandeses, usam designações distintas (e muito mais genéricas): “estruturas de terra”, no primeiro caso, e “construções geométricas de terra”, no segundo.
Note-se que uma das características mais notadas nos recintos do Acre, é precisamente a posição relativa da mureta e da valeta, aparentemente inversa daquela que uma finalidade defensiva faria supor: a valeta fica sistematicamente no interior do espaço delimitado pela mureta. Este detalhe permite estabelecer uma analogia com os famosos henges das ilhas britânicas, de que o mais conhecido é precisamente Stonehenge.
Nesse caso, as interpretações arqueológicas – baseadas em diversos tipos de evidências – têm privilegiado o caráter cerimonial dos recintos, reforçado quase sempre pela presença de construções megalíticas associadas.
Porém, para além dos henges, existem na Europa milhares de recintos, pré e proto-históricos, delimitados por sistemas de muretas e valetas (bank and ditch), desde Portugal à Ucrânia e desde a Escandinávia à Itália. Embora as questões funcionais não estejam definitivamente arrumadas, pode afirmar-se, sem grande margem de erro, que estamos em presença de uma forma de construir e que, com ela, se fizeram diferentes tipos de construções, com finalidades distintas: algumas, como os referidos henges, delimitam espaços claramente cerimoniais; outras, como as do Sudeste da Itália (Tavolieri) ou do Sul da Península Ibérica, são claramente estruturas defensivas, protegendo povoados. Saliente-se, nesta última região, a existência de recintos defensivos com áreas superiores a 100 ha.
Com isso, o geometrismo dos “geoglifos” do Acre não pode excluir o seu carácter arquitetônico: na verdade, círculos e polígonos regulares (sobretudo quadriláteros) são figuras geométricas geralmente utilizadas na arquitetura, tanto sagrada, como profana, um pouco por todo o mundo.

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Manuel Calado

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