Tïhtakariwaïn:
um santuário rupestre no Tumucumaque brasileiro
Resumo:
Neste artigo apresentam-se e discutem-se dois painéis de arte rupestre,
localizados numa caverna
granítica, em plena Terra Indígena Parque do Tumucumaque (Brasil). Trata-se de
um projeto colaborativo que envolveu um grupo de índios Tiriyó e Kachuyana
(povos de língua karib) e em que, a par de uma comparação com outros sítios de
arte rupestre na região amazónica-guianense, se procuram sentidos
interpretativos em articulação com a língua e a literatura oral destes povos,
no quadro do pensamento ameríndio, em geral.
Palavras chave:
Arte rupestre, Amazónia, Etno-arqueologia,
Chamanismo, Perspectivismo ameríndio
Tïhtakariwaïn: um santuário rupestre no Tumucumaque
brasileiro
Abstract: This paper presents and discusses two panels of rock art, located in a
granite cave in the Parque do
Tumucumaque Indigenous Land (Brazil. This is a collaborative project involving a
group of Trio and Kachuyana Indians (Carib language) and that, along with a
comparison with other rock art sites in the Amazonian-Guyanese region, is
seeking interpretative senses in conjunction with language and oral literature
of these peoples, in the frame of the Amerindian thought in general..
Keywords: rock art; Amazonia; ethnoarchaeology, shamanism;
amerindian perspectivism
Introdução
Tïhtakariwain
é uma caverna formada por um caos de blocos graníticos, definindo sobretudo
dois corredores ortogonais, cujas paredes se encontram parcialmente cobertas
por gravuras rupestres, com temas figurativos e geométricos (e figurativos/geométricos).
Localiza-se
numa plataforma, a meia altura de uma das primeiras elevações das montanhas do
Tumucumaque, cobertas por floresta tropical, sobranceira à extensa área de savana,
de relevo relativamente aplanado, onde se implanta, hoje em dia, a maioria das
aldeias Tiriyó. O sítio dista, aliás, menos de um quilómetro de uma aldeia
atual, denominada Ponoto.
Fig. 1 – A vista para a savana, a partir da entrada da
caverna (foto de Mariana Cabral).
Fig. 2 – A entrada da caverna de Tïhtakariwaïn (foto de
Mariana Cabral).
Segundo
a tradição dos Tiriyó (os Kachuyana e outros grupos menores instalaram-se
recentemente na região), a caverna foi palco privilegiado das guerras com os
vizinhos Wayana e o topónimo remete para um xamã (pïyai, em Tiriyó) com as pernas tortas, cuja figura se destaca na
iconografia do sítio (Fig.5, nº5). Etimologicamente, o nome Tïhtakariwain parece incorporar o verbo tïhta
(morrer ou estar em perigo de morte) e kariwa,
cabaça ou, alternativamente, kariwaja
(planta com usos mágicos);
Os
Tiriyó, autodesignados como Tarëno,
são um povo de língua caribe que
habita, junto com outros grupos minoritários, as margens dos rios, numa extensa
área de savana, enquadrada por floresta tropical, de um e outro lado da
fronteira entre o Brasil e o Suriname.
No
lado brasileiro, foi criado, adjacente às Terras Indígenas, o Parque do
Tumucumaque, considerado o maior parque de floresta tropical do mundo.
O
Tumucumaque foi, sobretudo por razões de ordem geográfica (a dificuldade de
acesso), uma das últimas fronteiras da literatura colonialista de viagens,
gerando mitos românticos que só tardiamente foram ultrapassados.
Tive
oportunidade de visitar a Terra Indígena Parque do Tumucumaque, por duas
ocasiões, no Verão de 2009, no contexto de um curso de capacitação científica,
dirigido aos professores indígenas. Com os alunos desse curso, organizado pelo
IEPÉ (Organização Não Governamental ligada à USP), visitei, juntamente com
Mariana Cabral, a caverna de Tïhtakariwaïn.
O
levantamento das gravuras limitou-se, por falta de condições logísticas, a dois
painéis, um no corredor de entrada e outro no corredor transversal, num total
de cerca de 12 m2; a seleção e o decalque desses painéis foram
executados, após uma formação expedita, pelos professores indígenas.
Fig.3
– Explicando aos jovens Tiriyó a técnica do decalque sobre plástico cristal.
O
resultado agora apresentado corresponde, na verdade, a um work in progress, em que, sobre a versão original gravada nas
paredes da gruta, em época indeterminada, foi produzida uma primeira
interpretação, pelos indígenas, em plástico cristal, que foi posteriormente
interpretada em gabinete e digitalizada. Falta um retorno ao sítio para
completar o levantamento e confirmar detalhes, nomeadamente sobreposições ou
imprecisões de traços, nas partes já desenhadas; falta um novo diálogo com os
donos do lugar: os Tarëno.
Na
verdade, pretende-se apresentar aqui apenas alguns elementos de um esboço
interpretativo, ainda em construção, e centrado, para já, nos únicos dois
painéis desenhados.
Foram,
dentro do possível, tidos em conta os vários modelos teóricos, em debate no
estudo da Arte Rupestre, como fenómeno global; privilegiou-se, porém, uma
focagem específica nas realidades arqueológicas e etnográficas ameríndias.
Nessa
interpretação, foram convocados especificamente alguns elementos da literatura
oral dos Tiriyó (Koelewijn e Rivière, 1987), contrastados com aspetos
específicos da sua cultura (Grupioni, 2009) e, em particular, da sua língua. Neste
último âmbito, a excelente obra (dicionário e gramática) de Sérgio Meira (1999),
ainda inédita, foi uma ferramenta inestimável.
A
gruta do Tïhtakariwaïn foi referida, pela primeira vez, por Protásio Frikel,
missionário, etnógrafo e arqueólogo (Frikel, 1963), que estudou os Tiriyó e
visitou o local; esses dados foram, mais recentemente, republicados numa obra
de referência sobre a arte rupestre da Amazónia, no Pará (Pereira, 2003).
Frikel,
descrevendo as suas observações, afirma que “’os sapos’ aí representados foram
identificados pelos índios como ‘a velha que, nos mitos, era a dona do fogo e
que, na sua incarnação zoomorfa, se manifesta como sapo cururu” (Frikel, 1963:
489). Este personagem existe igualmente entre os Wayana.
Porém,
o sapo ficou fora do levantamento agora apresentado.
Segundo
esse autor, os seus informantes Tiriyó atribuíram as gravuras aos antepassados
dos Wayana (Frikel, 1963: 481); os meus informantes, por outro lado, sem
esclarecerem diretamente a autoria das gravuras, atribuíram a ocupação da gruta
aos antepassados dos Tiriyó, que aí teriam buscado refúgio dos ataques dos
antepassados dos Wayana.
Como
seria de esperar, as versões sobre o desfecho da guerra entre Tiriyó e Wayana
são diametralmente opostas, conforme o ponto de vista. De um lado e de outro da
“barricada” tudo acabou com a aniquilação total dos inimigos.
Em
última análise, essa disjuntiva tem pouca substância, uma vez que as guerras em
causa certamente remetem para uma situação anterior à etnogénese “definitiva”
destes grupos, enquanto tal. Tiriyó e Wayana são conceitos que englobam povos
de línguas aparentadas, ocupando tradicionalmente as mesmas áreas geográficas,
em cuja génese a colonização teve, aparentemente, um papel importante.
Este
quadro de partida, levou-me, naturalmente, a incluir, no roteiro da
documentação a testar para a interpretação dos painéis, o extenso material
recolhido no trabalho de Jean Chapuis e Hervé Rivière (1987), uma obra bilingue,
profusamente anotada, assim como o trabalho, mais recente e mais
problematizador, de Renzo Duin (2006).
1.
Tïhtakariwaïn
no quadro da arte rupestre guiano-amazônica
A primeira impressão, quando comparamos
os motivos presentes na caverna de Tïhtakariwaïn, com o que se conhece, em
termos regionais, é a de que não existe nenhum paralelo direto. É certo que
permanecem muitas lacunas de prospecção e existem, previsivelmente, outros
sítios ainda não registados.
Seja um caso isolado, produto do
agenciamento humano, ou o representante de uma “família” ainda não descoberta, Tïhtakariwaïn
apresenta muitas especificidades, embora, ao mesmo tempo, partilea certos
detalhes com outros conjuntos conhecidos.
O “parente” mais próximo, à primeira
vista, localiza-se, já no Suriname, mas em “território” Tiriyó, perto da aldeia
de Kuamalasamutu: trata-se da caverna de Werepai (http://home.wxs.nl/~vrstg/guianas/werehpai/werehpai-eng.pdf).
Porém, os grafismos, num e noutro
sítio, diferem substancialmente, apesar de partilharem o mesmo tipo de ambiente
natural (caos de blocos graníticos) e, presumivelmente, a mesma área cultural
(o suposto território dos antepassados dos Tiriyó e dos Wayana).
Werepai integra-se, quanto aos
grafismos, razoavelmente bem no quadro daquilo que foi designado como “Tradição
Amazônia” ou “Tradição Guiano-Amazônica” (Pereira, 2003; Prous, 2002), cujo
principal traço definidor é a preferência pelos temas antropomorfos/zoomorfos, em
que a representação da face desempenha um papel preponderante ou mesmo exclusivo.
Na verdade, na sua versão mais esquemática,
essas figuras resumem-se apenas ao esboço da cabeça (ou do cabelo) e aos olhos (Mazière,
2008: 137, fig. 172). Essa tendência parece manifestar-se numa área delimitada,
com bastante rigor, a Sul, pelo Amazonas, e estendendo-se por toda a região
guiano-amazónica, da Guiana Francesa até à Colômbia; o limite Norte, porém,
aparece muito mal definido (Gomes, 2012).
Neste aspeto, as gravuras do Tïhtakariwaïn
destoam totalmente das de Werepai: a maioria dos motivos, em particular aqueles que aludem à
figura humana, apesar de terem a cabeça representada (numa escala que
permitiria, sem dificuldade, traçar detalhes do rosto), não têm olhos, nem
outras feições. Numas (Fig. 5, nº 4, 5), as feições (se alguma vez existiram)
poderiam ter sido obliteradas por picotagem; noutras (Fig. 7, nº 1; e talvez
Fig. 7, nº3), a face da figura parece estar oculta por uma máscara.
Em território Tiriyó, mas
estendendo-se, para Sul, ao curso médio do Erepecuru, existe um conjunto de
gravuras com uma personalidade muito própria, embora também enquadrável na
referida Tradição guiano-amazônica. Nesse conjunto, predominam as figuras
antropomórficas estilizadas, que assentam num grafismo semicircular radiado,
representando uma face humana, eventualmente emplumada. Os olhos são sempre representados, ou
sugeridos, e o corpo é pouco detalhado, reduzido ou inexistente.
Para além desse núcleo central, existem
exemplares avulsos, a Oeste, no Trombetas (em território Wai-wai) (Pereira,
2003: 92), a Sul, em Prainha (Pereira, 2003: 185) e ainda, a Norte, na Guiana
(Pereira, 2003: 84).
Em plena cadeia montanhosa do
Tumucumaque, num abrigo rochoso, aberto na encosta de um inselberg granítico,
existe um outro sítio que, por várias razões, é único na região guiano-amazónica:
Mamilihpann (Mazière, 2008: 111-118). Trata-se de um conjunto de painéis
pintados, em que não existem representações de faces, sendo as figuras humanas
geralmente representadas em corpo inteiro, de formas muito esquemáticas.
Igualmente muito singular é o sítio das
Roches du Marouini (Mazière, 2008: 99-110), também na Guiana francesa. As
gravuras localizam-se a céu aberto, no cimo de uma montanha, e os temas são
sobretudo zoomórficos, com alguns antropomórficos, quase todos de corpo
inteiro, sem destaque para a face.
Estes dois últimos exemplares, note-se,
dificilmente poderiam ser catalogados na Tradição Amazônia ou Guiano-Amazônica,
tal como ela vem sendo definida.
Uma última referência a outro sítio
singular: a Pedra do Índio, em Ferreira Gomes, AP. Trata-se de um lajedo
granítico em que os temas são sobretudo de natureza geométrica, sugerindo,
muitos deles, jogos gráficos (alguns claramente figurativos) com elementos
geométricos simples: círculos, espirais, estrelas, etc.
As diferenças entre os conjuntos
mencionados (descontando as diferenças de suporte e de técnicas utilizadas)
refletem certamente temporalidades diversas, identidades diversas,
funcionalidades diversas.
Mais à frente, na análise detalhada dos
dois painéis objeto deste trabalho, apontarei algumas semelhanças, marcas de
uma eventual “estética ameríndia” (Gomes, 2012; Grupioni, 2009) iluminada por
um eventual pensamento ameríndio (Viveiros de Castro, 1996; 2002).
2.
Ideias, métodos
e inspirações
O espaço deste artigo não permite
discutir convenientemente todos os aspetos teóricos e metodológicos envolvidos.
Fica claro que se trata aqui de um
exercício interpretativo, no domínio da arte rupestre, a partir dos textos, da
língua e da memória das pessoas.
Existem, é certo, problemas
epistemológicos (e outros) a considerar (Echo-Hawk, 2000; Harrison e Schofield, 2009).
Porém, para encurtar caminho, presume-se a “existência de um fundo cosmológico comum
panamazônico, de longa duração temporal e em permanente mudança histórica,
embora marcado por lacunas ou descontinuidades geográficas, que possui, além de
um valor etnográfico, uma expressão estética” (Gomes 2012: 2).
Estamos
pensando, claro, no perspetivismo ameríndio (Viveiros de Castro, 1996, 2002, 2004),
um dos pontos fortes da agenda antropológica americanista (ou amerindianista)
atual.
Não
é nova a ideia de pensar o
perspetivismo ameríndio na perspetiva da arqueologia (Barreto, 2009; Gomes, 2012). Esse exercício foi, sobretudo,
aplicado ao universo da cerâmica pré-colonial amazónica.
Enrico Comba (2014), invocou, recentemente, as eventuais vantagens de aplicar o perspetivismo ameríndio ao estudo da arte paleolítica europeia.
Enrico Comba (2014), invocou, recentemente, as eventuais vantagens de aplicar o perspetivismo ameríndio ao estudo da arte paleolítica europeia.
Testar a sua aplicabilidade à arte rupestre
amazônica é um outro passo, certamente mais curto, e, aparentemente, mais
sustentável (Valle, 2012).
Pensando
na interpretação da arte rupestre, salta
a vista a importância, neste modelo, da relação entre os humanos e os animais,
sobretudo (mas não apenas) quando se trata de interpretar os omnipresentes
zooantropomorfos.
O
perspectivismo ameríndio foi, na sua génese, o resultado de uma análise global
das muitas e variadas etnografias amazónicas (incluindo, expressamente, os Tiriyó) que, apesar das distâncias
geográficas e linguísticas, apresentam muitos mitos e crenças comuns (Viveiros
de Castro, 1996; Halbmayer, 2012).
O
autor do conceito, numa interessante reflexão sobre o mesmo (Viveiros de
Castro: 2002; 122, 123), conseguiu repetir, em apenas seis linhas de texto, oito
vezes a mesma expressão:" ponto de vista". O artifício literário não me parece
inocente: do meu ponto de vista, ele sublinha a verdadeira importância do olhar
e dos olhos, para o caçador amazónico.
Na
língua Tiriyó, como notou Denise Grupioni (2009: 22), o olhar e o olho (ene, enu) estão na raíz de alguns conceitos fundamentais, como, por exemplo,
enpa (ensinar) e ëenpa (aprender); para além destes, acrescente-se ainda enu(ru) (nascer), enta (acordar), enuta
(lembrar), para além de outros casos análogos em Wayana (Chapuis e
Rivière, 2003: 429), ou em Waiwai (Zea, 2010).
Porém,
o exemplo mais interessante, quando pensamos na arte rupestre guiano-amazônica,
é a palavra “face” que, em Tiriyó, se diz enpata.
Isto é, à letra, “o lugar dos olhos”.
Do
meu ponto de vista, parece claro que o perspectivismo amazónico faz parte da
própria estrutura das línguas indígenas. Orais ou “escritas”
Na
verdade, no que diz respeito à relação homem/animal, a língua Tiriyó tem várias
formas para expressar aquilo que Philippe Descola caracterizou como próprio de “sociedades
pré-modernas, (...), encarando os animais não como sujeitos de direito tutelado,
mas como pessoas morais e sociais plenamente autônomas” (Descola 1998: 25).
Por
um lado, no emprego de pronomes, distinguindo-os entre animados e inanimados.
Por exemplo, akï? “quem?”
(animado) e atï?
“que coisa?” (inanimado). Homens e animais estão na mesma categoria gramatical.
Por
outro lado, os nomes, em Tiriyó, podem ser obrigatoriamente possuíveis,
optativamente possuíveis, ou nunca possuíveis. Os animais, como seria de
esperar, encontram-se nesta última categoria.
Segundo o linguista que estudou o Tiriyó, “while reading Tiriyó texts, one has the
impression that animal names are not simple nouns, but really represent
sometimes ‘animal tribes’, similar to, e.g., tarëno ‘Tiriyó’, waijana
‘Wayana’, etc., and sometimes individuals, like personal names”
(Meira 1999: 244)
Ou ainda “in some stories, vocative terms for animals
occurred (e.g., iwa
‘iguana-voc’, corresponding to iwana
‘iguana’); kinship terms are the only other group of nouns with vocative
forms” (Meira 1999: 244)
Esta fossilização do perspectivismo na
estrutura gramatical do Tiriyó, implica certamente, alguma profundidade
temporal. Espera-se, claro, que ela seja compatível com a idade das gravuras do
Tïhtakariwaïn.
A
relação entre as gravuras e a língua (e a literatura oral) é certamente mais
problemática. Desde que foram pensadas e executadas, as gravuras mantiveram-se
virtualmente inalteradas (Larsson, 2004). As línguas e as narrativas, presumivelmente, não.
É
interessante verificar que, entre os especialistas de arte rupestre (ou de arte
indígena) é fácil encontrar expressa, de forma mais ou menos metafórica, a
ideia de uma certa identidade entre arte gráfica e escrita.
Limitando a pesquisa a investigadores
trabalhando atualmente na região, em sentido amplo, e começando pelos
arqueólogos:
a) “La lente et complexe invention de l’écriture n’a été, ni la
première ni la seule forme que l’homme a trouvé pour communiquer au moyen de
signes tracés” (Mazière 2008: 141);
b) “essa forma de linguagem possui uma gramática gerativa e
estrutural que pode ser estudada e compreendida.” (Schaan 2001: 8);
c) “the study of a native language present in paintings and
engravings” (Muñoz 2010: 933);
d) “ as tradições de pintura e gravura pré-históricas poderiam
ser comparáveis a famílias linguísticas, no interior das quais as línguas
evoluem” (Pessis e Guidon 1992: 21).
Passando
pelos antropólogos:
a)
“uma
concepção de iconografia e de grafismos indígenas definidos como veículos de
comunicação visual estética.” (Vidal e Silva, 2007 : 283);
b)
“o
kusiwa, arte gráfica que é aplicada sobre diferentes suportes (corpo,
cerâmica, cabaça e, hoje em dia, papel), pode ser traduzido como representação
gráfica abstrata, e inclui outras formas de representação alheias à tradição do
grupo, como a escrita”.(Gallois, 2007: 210);
c)
Os “Kayapó (…) possuem uma palavra para pintura, No’ok, e (…) esta palavra somada à
palavra folha, Pi’ok, é que deu
origem à palavra Pi`okno`ok, que poderíamos traduzir como escrita no
papel.” (Ferreira, 2010: 47).
Nos dois últimos exemplos, para além da opinião dos
antropólogos, está sobretudo expresso, através da língua, o ponto de vista dos
índios. De fato, a introdução da escrita, entre estes povos, foi
conceptualizada como mais uma forma de desenho ou pintura. Ou, se preferirmos,
mais uma forma de escrita.
Em Tiriyó, como seria de esperar, menuhte, significa desenhar, pintar ou escrever.
Posto isto, é claro que a arte rupestre
não se esgota nas suas eventuais funções enquanto forma de comunicar e de
arquivar memória.
Há que pensar nas práticas e crenças xamanísticas,
omnipresentes nas sociedades indígenas da região e tidas como elemento-chave
para a interpretação da arte indígena (Reichel-Dolmatoff, 1975). Há que pensar,
claro, na dimensão social e política. Há que pensar na criatividade individual
e coletiva. Há que pensar nas limitações e possibilidades da própria expressão
gráfica.
3.
O lugar do Mito
Le Piyanakoto
est déjà rentré dans la caverne. Kailawa est mortifié.
Ils veulent
casser le roc, ils ont bien vu par où il est reparti,
mais il est
(déjà) rentré dans la caverne.
> (Kailawa et
ses hommes) brisent pourtant (ce qui obstrue) l’entrée, en vain,
ça ne cède pas
parce que le rocher est épais.
Comment (faire)
? Il y avait sans doute quelque chose qui permettait d’ouvrir
de l’intérieur,
et qui a été fabriqué autrefois !
> C’est pour
ça que ça s’est relevé dès que (l’assassin) est entré, bien que ce soit épais
et lourd ; ces choses-là ne peuvent être soulevées (comme ça) !
Des bois sont
essayé en vain, les massues se fracassent, ça ne sert à rien !
Dedans (la
caverne, les Piyanakoto) font du vacarme.
(Chapuis
e Rivière, 2003: 711)
L’endroit est
dégagé parce que c’est une colline.
La montagne est
ainsi, et parce que ça se passe dans la vallée,
(Kailawa et ses
hommes) le voient, à lui.
(Sikëpuli) se
pare: il attache ses jambières, sa ceinture,
> accroche sa
parure d’oreille, là et là.
Son casse-tête
est de ce côté-ci, sa parure d’oreille de ce côté-là,
mais on ne sait
pas comment il peut tenir (ses armes) quand il combat”
(…) ”Puis
(Sikëpuli) danse comme cela et les parures d’oreille tintent…
parce qu’il a
déjà (mis) ses parures d’oreilles
(Chapuis
e Rivière, 2003: 723)
Estes dois excertos fazem parte do
conjunto de narrativas dos Wayanas focadas na guerra entre eles e os Tiriyó. O episódio
evocado assinala o final do ciclo das guerras fratricidas e o início de uma
nova era de paz (Chapuis e Rivière, 2003: 729).
Segundo se conta, entre os Wayana, os Tiriyó
(Piyanakoto) esconderam-se numa gruta
e bloquearam a entrada. Kailawa, o herói Wayana, incapaz de resolver o
problema, chamou para o efeito um outro demiurgo, Sikëpuli, que, antes de
desfazer a rocha com a sua borduna mágica (que emite raios) e liquidar os
refugiados, prepara a parafernália para a ação: cinto, perneiras, brincos,
borduna.
É sugestivo, como hipótese de trabalho,
identificar o cenário desta história com a caverna de Tïhtakariwaïn, aceitando,
pelo menos até nova ordem, a interpretação dos próprios Tiriyó.
Antes de mais, porque:
a)
é
uma gruta suficientemente espaçosa para acolher um número razoável de pessoas;
b)
apresenta
uma entrada estreita cujo bloqueio teria sido viável
c)
se
implanta na interface entre a montanha/floresta e a planície/savana).
Note-se que o informador de Jean
Chapuis, Kuliyaman, indicou uma localização diferente, algures mais a Leste,
junto à nascente do Mapahony, entre as
nascentes do Litany e as do Jari
(Chapuis e Rivière, 2003: 729); este deslocamento geográfico pode, porém,
dever-se ao fato de Tïhtakariwaïn ficar, atualmente, fora do território ocupado
pelos Wayana. Na verdade, seria interessante testar se, junto às nascentes do
Mapahoni, existe alguma outra caverna candidata ao título.
Convém anotar que o fato de ter
eventualmente servido como cenário de guerra, não retira o caráter xamânico que
os Tiriyó lhe atribuem e que o nome indiretamente pode evocar.
De resto, a guerra, nessas narrativas,
era inseparável de práticas mágicas.
De
acordo com Jean Chapuis, “Kailawa est le
maître des ‘hemït’ (…) Aucune
expédition de guerre, d’une façon générale, n’était envisageable sans ‘hemït’”
(Chapuis e Rivière, 2003: 757) e “les chamanes étaient indispensables à la préparation de toute attaque,
chez les Wayana comme dans la plupart des groupes Amérindiens” (Chapuis e Rivière, 2003: 769).
Os hemït
eram, para os Wayana, unguentos, feitos sobretudo com plantas mágicas, que se
passavam no corpo dos guerreiros, para estes adquirirem capacidades
sobrenaturais.
A kariwaija,
que, como referi, parece integrar o nome Tïhtakariwaïn, é uma “species of plant used by shamans for
witchcraft” (Meira, 1999). Num dos textos da literatura oral Tiriyó, o dos
“Irmãos que viajaram para o céu”, a kariwaija
aparece listada como um dos ingredientes do produto que permitiria aos
protagonistas levantarem voo (Koelewijn e Rivière, 1987: 174).
Guerra e xamanismo (Fausto, 2000). Tïhtakariwaïn.
4.
Risco a Risco
Interpretar
significa, entre outras coisas, correr riscos. É possível, com base nos
argumentos acima expostos, que a caverna de Tïhtakariwaïn tenha sido cenário
dos “fatos” descritos na literatura oral, ou até que os tenha inspirado (Valle, 2012: 440).
Na verdade,
costuma considerar-se que a epopeia de Kailawa, o herói fundador da “nação
Wayana”, se reporta a uma época relativamente recente, eventualmente meados do
sec. XIX, ou, de qualquer modo, a uma fase em que se supõe que já ninguém fazia
arte rupestre; tendo isto em conta, mas mantendo algumas reservas, convém
admitir que as gravuras podem ser anteriores ao mito ou que o mito possa ter
fundido eventos de tempos diferentes.
Nas próximas
linhas, vamos analisar e comparar alguns dos elementos que compõem os dois
painéis em apreciação, elencando pistas para uma interpretação possível.
Fig.4
– O Painel A
O Painel A representa uma cena complexa,
da qual se destaca o próprio Tïhtakariwaïn, o “xamã das pernas tortas” (na
expressão dos meus informantes) em baixo, à direita. Esta figura, à partida, pela
sua proeminência, poderia corresponder ao Kailawa do mito Wayana, uma vez que
ele era o modelo perfeito do xamã e do guerreiro.
Segundo parece, entre os Wayana, “les
chefs combattaient rarement et demeuraient à l’écart du lieu des
affrontements.” (Chapuis e Rivière, 2003: 751, nota1836). Esta suposta atitude
contemplativa e a posição descentrada em relação ao resto da cena, condiz
razoavelmente com a imagem.
Porém,
apesar de separado espacialmente, estabelece-se uma ligação, a partir do
toucado de penas, com o resto da cena, como se o personagem a estivesse
pensando ou sonhando. Na verdade, estaria provavelmente “vendo”, uma vez que o
líder guerreiro, em Wayana, era designado como “ënetën, ‘celui qui regarde’, ‘celui qui voit’ ”
(Chapuis e Rivière, 2003: 429)
Ao lado do personagem principal (Tïhtakariwaïn/Kailawa),
destaca-se outra figura (Fig.5, nº 4), em plena ação. Tem ambos os braços
levantados e, numa das mãos, um bastão longo que brande, aparentemente, contra
o labirinto (Fig.5, nº 3). Seguindo o mito Wayana, seria Sikëpuli, o demiurgo
amigo de Kailawa que o ajudou a vencer os Tiriyó, rompendo as rochas que
bloqueavam a caverna, com o seu bastão mágico que expelia raios.
Esta figura tem algumas caraterísticas
gráficas relativamente comuns no contexto amazónico-guianense.
A cabeça triangular, por exemplo, é um
elemento que percorre toda a região, a Norte do Amazonas, em paralelo com as
figurações de caras mais ou menos circulares. Na Guiana Francesa, o sítio de La
Carapa (Mazière, 2008: 27), apresenta uma notável gama de variantes com
antropomorfos de cabeça triangular.
Também o corpo lenticular segmentado
longitudinalmente é relativamente frequente na arte rupestre amazónica e
guianense, com paralelos na Guiana Francesa (Mazière, 2008: 41) e em Monte
Alegre (Pereira, 2003: 140, 154), mas também a Sul do Amazonas, em Altamira
(Pereira, 2003: 175); na Ilha dos Martírios, essa solução gráfica aparece usada
num zoomorfo (jacaré) (Pereira, 2003: 112).
Este
personagem parece agir diretamente com a figura do labirinto (Fig. 5, nº3) que
poderíamos interpretar como uma simbolização da caverna: com dois corredores
ortogonais, o maior deles ligado à entrada estreita, representada na parte
superior do labirinto. Em volta da gruta, o caos de blocos. É possível que a
estrutura da gruta fosse comparável a uma cabaça (kariwa), metáfora que podia corresponder, graficamente, à parte
central do labirinto.
Acima do labirinto parece desenrolar-se
uma cena de luta (Fig.5, nº 2), envolvendo dois ou três antropomorfos. Esta
cena poderia aludir ao extermínio dos sitiados.
Em baixo (Fig.5, nº 6), aparece uma
cabeça triangular com apêndices auriculares, invertida e sem corpo. Poderia
tratar-se também de uma alusão aos vencidos, um cadáver no campo de batalha.
Por último, no canto superior esquerdo
da cena, fazendo pendant com o Tïhtakariwaïn,
destaca-se um veado, de cabeça para baixo. Para esta figura, porventura a mais
enigmática do conjunto, não encontrei paralelos na iconografia amazónica. Por
outro lado, o veado também está ausente dos mitos dos Tiriyó e dos Wayana a que tive acesso.
Porém, tanto para Norte, como para Sul,
o veado é um grande tema da arte rupestre ameríndia (e, até certo ponto,
global). Na Colômbia, por exemplo, os índios
Tunebo, acreditam que quando um veado morre, a sua alma vai para as
montanhas e transforma-se num humano (Marriner, 2002: 33).
Segundo André Prous, “in central Brazil, the more praized animals for indian hunters are
deer, peccari (wild american pigs) and tapir. But in the rock art of Minas
Gerais state, deer are the dominant painted animals in Planalto tradition,
while pecaris are quite completely absent and tapir cannot be seen;” (Prous
2002: 9).
A posição claramente superior desta figura parece relacioná-la com o céu
(kapu). Na verdade, a sua posição
invertida tanto pode implicar que está caindo do céu como que está subindo ao
céu. Poderia tratar-se de um demiurgo (tal como o sapo registado por Frikel)
eventualmente esquecido no mito Wayana? Ou as almas dos mortos subindo para
Leste? Este é certamente um tema que exige futuros desenvolvimentos.
Por último, em volta das personagens
identificadas, espalham-se várias figuras simples que parecem remeter
para a parafernália guerreira: machados, bordunas, etc. Veja-se a importância
atribuída, no mito Wayana acima apresentado, aos detalhes do aparato guerreiro
e xamânico, antes de Sikëpuli entrar em ação.
Fig.5 - Painel A: detalhes analisados no
texto (realçados a negro).
Do ponto de vista exclusivamente gráfico,
a figura do Tïhtakariwaïn destaca-se pela sua originalidade, embora reproduzindo
uma característica muito recorrente na chamada Tradição Amazônia, a par da já
comentada representação das faces oculadas: trata-se do uso de formas geométricas
básicas (círculos, triângulos e, sobretudo espirais) para construir
graficamente figuras esquemáticas, mas reconhecíveis.
Essa tendência, com resultados análogos,
verifica-se também nos motivos gráficos dos povos indígenas atuais. Segundo
Denise Grupioni:
Tanto entre os
Tiriyó, quanto entre os Kaxuyana encontramos um padrão recorrente de desenho
que se situa entre o grafismo e a figura, por ser formado a partir de traçados
geométricos que acabam por compor uma imagem por inteiro de animais ou seres
primevos. Esse padrão (…) se destaca tanto do repertório de motivos gráficos,
quanto do repertório de motivos figurativos por mesclar duas categoriais num
único desenho: imenu e ikuhtu grafismo
e imagem. (Grupioni,
2009: 45)
No
caso concreto do Tïhtakariwaïn, a figura humana foi estruturada por um par de
espirais duplas, justapostas simetricamente. Encontramos variantes dessa
solução gráfica, mas mais estilizadas, em alguns exemplares do Erepecuru, na
Cachoeira do São Nicolau (Pereira, 2003: 74) e, de uma forma elementar, na
Pedra do Índio, Amapá (Fig.6).
No Rio Negro, este grafismo foi considerado o “mais epidêmico”, transversal às fronteiras geológicas (Valle, 2012: 441; 456
No Rio Negro, este grafismo foi considerado o “mais epidêmico”, transversal às fronteiras geológicas (Valle, 2012: 441; 456
.
Fig.6
- Motivo com duas espirais duplas, na Pedra do Índio, Amapá.
De
resto, este mesmo tipo de jogo gráfico surge também, por exemplo, de várias
formas, na cerâmica Marajoara (Shaan, 2001).
Mais
frequente ainda, na arte rupestre regional, são os jogos de espirais desenhando
faces humanas ou, no limite, apenas pares de olhos. Vejam-se, por exemplo, os
casos de Monte Alegre (Pereira, 2003: 136; 150), Portel (Pereira, 2003: 207), Trombetas
(Pereira, 2003: 97) ou Erepecuru (Pereira, 2003: 77). Mais uma vez, na sua
forma mais despojada, atente-se no exemplar da Pedra do Índio (Fig.7)
Fig.7
– Par de espirais da Pedra do índio.
O
Painel B tem igualmente um personagem central, presumivelmente um xamã
guerreiro (Fig. 9, nº1), atendendo aos adereços: máscara (de bambu), borduna e
maraca (Fig.9, nº2). À sua volta, são vários os items que podem corresponder ao
paramento dos guerreiros, nomeadamente machados e outros artefactos ainda não
identificados.
Fig.
8 – O Painel B.
Fig.
9 – Painel B: detalhes analisados no texto (realçados a negro).
A
“couraça de bambu” aparece referida diretamente no texto Tiriyó que fala da
guerra com os Wayana (Koelwijn e Rivière, 1987: 262). Por outro lado, na
toponímia local, Pononpë, um local junto ao Paru de Oeste, onde existem
gravuras rupestres (Pereira, 2003: 91), significa, segundo me informaram os Tiriyó, “máscara
de guerreiro”.
Quanto
aos machados de pedra (tïpkëtë), eles aparecem referidos, en passant, como fazendo parte do
arsenal bélico wayana (Chapuis e Rivière, 2003: 545). Nos textos Tiriyó, em
contrapartida, existe uma história que envolve um machado de pedra mágico usado
para a abertura da roça.
A
importância simbólica do machado de pedra, nas antigas sociedades de
horticultores, derivou inicialmente da sua importância na preparação dos terrenos
agrícolas. Como outros artefactos especiais, os machados ganharam, muitas
vezes, um certo estatuto de gente (Pétrequin e Pétrequin, 2006).
Na
arte rupestre regional, os machados e outras armas aparecem representados com
alguma profusão, nas Roches du Marouini (Mazière, 2008: 103, 104), um conjunto
que, como já referi, tem uma personalidade muito própria.
No caso concreto do Painel B, o
personagem-herói poderia ser outra vez Kailawa, aqui representado,
eventualmente, na sua missão de pacificador dos povos, missão que, na lógica
Wayana, foi o corolário da sua intensa atividade guerreira.
Para
além dos adereços da praxe (entre os quais, as armas, mas também os paramentos
de orelhas e a maraca), o herói contracena com três figuras que, apesar de
apresentarem estruturas semelhantes, são bem distintas entre si. Estas figuras
poderiam representar linhagens ou clãs (passe ao lado a discussão teórica sobre
a propriedade destes conceitos), com algum eventual parentesco com os chamados
“postes totémicos”, tão caraterísticos da Columbia Britânica, e que Denise
Gomes trouxe à colação, a propósito da iconografia da cerâmica amazónica
(Gomes, 2012: 149-154)
Todas
apresentam, de baixo para cima, a mesma sequência; uma base diferenciada,
seguida de três elementos de recorte antropomórfico, mais ou menos em X,
seguidos de um outro diferenciado e terminando todos eles com uma figura
sobressaindo da sequência: um serpentiforme (Fig.9, nº 2), um arboriforme (Fig.9,
nº4) e um possível antropomorfo (Fig. 9, nº5).
Cada
um dos elementos em X contém, só por si, uma sugestão antropomórfica. Porém, as
três figuras poderiam ser organizadas em função do caráter mais ou menos
explícito de outro elemento com carga antropomórfica: os pares de espirais. Na
Fig. 9, nº 4, os dois pares de espirais sugerem uma figura semelhante ao Tïhtakariwaïn;
na figura 9, nº 5, existe apenas um par de espirais, mas na mesma posição
relativa que na figura anterior; por último, na Fig. 9, nº 2, as espirais estão
ausentes, mas o resto apresenta o mesmo tipo de sequência.
Segundo
a literatura oral Wayana, a estratégia de Kailawa, para acabar com a guerra
endémica entre os grupos, mais ou menos aparentados, foi exterminar todos os
adultos e perfilhar as crianças, por forma a manter as diferentes linhagens ou
clãs, mas eliminando os ciclos de vingança que perpetuavam os conflitos.
Numa
leitura geopolítica atual, considerando que os processos de etnogénese, mesmo
que estimulados pela pressão colonial, deram continuidade a um processo
endógeno, poderíamos considerar que os três emblemas remetiam para as raízes
daquilo que são hoje os Wayana, os Apalaí e os Tiriyó, todos eles com alguma
identidade linguística e cultural.
Ou, numa
perspetiva mais Wayana, poderiam eventualmente corresponder a outra tríade que
parece ter emergido na reorganização, após a fase mais conturbada. Na verdade,
os Wayana estão, hoje em dia,
“unis au sein de
fédérations qui occupent l’espace politique régional : Apalai sur le Parou de
l’Est, Upului sur le Jari, Vrais Wayana (…) sur le Litany et le Marouini, pour
ne citer que les plus puissantes de celles qui nous concernente directement
dans ce travail” (Chapuis
e Rivière, 2003: 779)
5.
Concluir é
preciso
Como referi, no início, este é um
trabalho em curso. Um primeiro olhar. Outros dados e outras leituras,
atualmente em avaliação, ficaram de fora, como é manifestamente, o caso dos
alinhamentos de pedra (Frikel, 1961; Calado, 2002, 2009; Scarre, 2004).
Warunao, significa,
em Tiriyó, “o lugar escuro em que o xamã faz o seu trabalho” (Meira, 1999). O
Tïhtakariwaïn é tipicamente, nesse sentido, um santuário.
Estes personagens sem rosto (e, sobretudo, sem
olhos) parecem contradizer uma das propostas avançadas neste trabalho, isto é,
de que o perspetivismo amazónico se refletiu na frequência com que as figuras
oculadas ocorrem na arte rupestre regional.
Porém, na caverna de
Tïhtakariwaïn, a opção foi a inversa. De uma forma que parece intencional, considerando
os temas e a escala.
Este sítio parece encenar, embora
pela negação, essa obsessão pelo olhar, tão típica do pensamento amazónico.
A interpretação produzida para os
dois painéis parece encaixar, com muita verosimilhança, na narrativa da gesta
de Kailawa. Recorde-se que, nesse registo, o evento do massacre dos Tiriyó não
é um episódio avulso, mas marca o momento em que, de forma trágica (para os
vencidos) se encerra, por processos mágicos, um ciclo tenebroso de violência
(painel A) e se inicia uma fase de convivência pacífica (painel B).
É claro que se trata apenas de
dois painéis, apesar de ambos muito coerentes, num conjunto bastante mais
vasto. É como se, de uma HQ, tivéssemos lido apenas duas pranchas. Resta ver o
que a análise dos restantes painéis nos reserva.
Metaforicamente, há muita pedra
para quebrar.
Ficam, porém, algumas sementes a
desenvolver em próximas etapas: a relação entre as línguas indígenas e a arte
rupestre é um dos troncos a fazer crescer, assim como a dupla aproximação da
arte rupestre, aos grafismos indígenas, por um lado, e à literatura oral, por
outro.
Neste processo, os indígenas já estão participando: desde
logo, através das memórias escritas e da própria língua. Participaram, de forma
mais personalizada, na escolha dos painéis a decalcar e na forma de o fazer. Na
transmissão de tradições. Foram eles, claro, que decidiram levar-me lá.
Concluo, agradecendo, primeiro, aos Tiriyó a oportunidade de
os conhecer um pouco e partilhar com eles esse esforço de olhar atentamente
para os vestígios dos antigos.
Agradecendo, e muito, ao IEPÉ, em particular às Professora
Dominique Gallois e Denise Grupioni. E aos antropólogos que, de um modo geral,
me têm, perspectivisticamente, ajudado a ver um mundo fascinante. Sem deixar,
espero, de ser arqueólogo.
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